Todas as organizações surgidas no momento pré-digital (analógico) precisam se adequar. Caso contrário, acabarão, ou se tornarão irrelevantes. A OAB - Ordem dos Advogados do Brasil - é claramente uma organização em perigo. E aqui não falo do trabalho de um ou outro gestor específico da Ordem, mas das travas estruturais de toda a instituição.
Há vários fatores que colocam a existência e/ou a relevância da OAB, como organização analógica que ainda é, em perigo.
O primeiro ponto é a Transformação Digital em si (e a falta de adequação da Ordem a ela).
A Transformação Digital possui uma base tríplice: pessoas (cultura), novos modelos organizacionais e tecnologia. Isso significa que não adianta implementar aplicativos, ou softwares sem antes implementar uma profunda mudança de cultura/mentalidade e modelo organizacional.
Se você quer um resumo: Transformação digital é o processo em que uma organização implementa um mindset (mentalidade) digital em todos os seus setores.
O que interessa é que os processos utilizados na construção e entrega dos serviços obedeçam à lógica do mundo digital.
E qual é essa lógica? Estou falando das mudanças rápidas, das respostas instantâneas, da flexibilidade e da agilidade.
Para que você entenda melhor, explico abaixo alguns aspectos fundamentais para a transformação digital:
Foco no usuário: Nunca foi tão fácil entender os desejos e preferências dos usuários. Então, é fundamental que essas informações orientem todo o trabalho da organização. No caso da OAB, seus usuários são todos os(as) advogados(as) e estagiários(as) na instituição inscritos. Não confunda: os usuários não são apenas os que possuem cargo na OAB, mas todos(as) os(as) inscritos(as)! Em função desta característica de foco no usuário, outras duas se desdobram:
A) Visão de fora para dentro: A OAB deve se guiar pela visão da maioria dos seus inscritos: eles não estão dentro da OAB, com cargos na instituição. Por essa característica, há um rompimento das regras da Transformação Digital todas as vezes que a Ordem impõe algo de “dentro para fora”, como fez, por exemplo, com a “Proibição da Ostentação”, ou com a “Não recomendação do Tik Tok” (como ocorreu na OAB/MG).
B) Todos se sentem donos: Todas as vezes que, na OAB, as pessoas que lá ocupam cargos, agem como os donos da instituição, há violação dos ditames da Transformação Digital. Em uma organização analógica/tradicional poucos se sentem donos, o que trava a inovação e impede o foco no usuário. O resultado? Perder relevância para estes usuários.
Feedbacks constantes: Todas as organizações cometeram, cometem e cometerão erros. Como agora há mais e melhores possibilidades de obter feedback, é preciso aproveitar as falhas para melhorar a prestação dos serviços. Porém, poucos se sentem confortáveis em criticar a OAB, por medo de serem perseguidos. Claramente esta é mais uma falha na transformação digital.
Entregas mais ágeis: Todos esses processos – de produzir, lançar a solução, obter feedbacks e corrigir os rumos quando preciso – devem acontecer com a máxima eficiência.
Adaptação às mudanças: As entregas precisam ser ágeis porque os contextos mudam o tempo todo. Por isso, a organização precisa ter resiliência e, ao mesmo tempo, capacidade de flexibilizar seus processos. Você já percebeu como a OAB, em sua função “cartorária” é lenta e ineficiente?
Não sei se você percebeu, mas em nenhum dos aspectos que acabei de explicar, mencionei a tecnologia...
Isso não quer dizer que ela não deve estar presente. Pelo contrário, são as novas tecnologias que tornam tudo isso muito mais fácil.
É por isso que ressaltei que a Transformação Digital vai além de utilizar soluções tecnológicas em uma organização.
O conceito implica em usar a tecnologia para implementar a mentalidade digital, composta pelos pilares que explicamos acima.
Por meio de novas soluções, é possível atenuar e resolver problemas tradicionais com mais praticidade, rapidez e eficácia.
A transformação digital pode contribuir, por exemplo, para:
- Tornar a comunicação mais rápida e assertiva
- Integrar setores, tornando as equipes mais sintonizadas e colaborativas
- Acessar informações completas de maneira mais plural
- Automatizar processos e diminuir a burocratização
- Favorecer as tomadas de decisão através do suporte com dados
- Melhorar a interação com os usuários por meio de canais mais instantâneos
- Facilitar a análise de desempenho graças às ferramentas de gestão modernas.
Infelizmente, não vemos a OAB fazendo o seu “dever de casa” relacionado à Transformação Digital. O resultado é: ao longo dos anos a instituição vem perdendo relevância perante seus inscritos.
Veja abaixo alguns exemplos do que pensam dezenas de juristas:
Há pelo menos 16 pontos-chave para a Transformação Digital Jurídica (falo tanto da OAB, quanto do seu escritório e/ou sua carreira). Confira quais são e reflita quais delas já são práticas na OAB, no seu escritório e quais são uma oportunidade para transformar em realidade. Da relação completa abaixo, destaco 5 que entendo como indispensáveis para qualquer organizaç, independente do porte, setor e estágio de maturidade digital.
- Implemente ferramentas digitais para tornar as informações mais acessíveis em toda a organização;
- Envolva os líderes (líderes de iniciativas digitais ou nã) para apoiar a transformação;
- Modifique os procedimentos operacionais padrão para incluir novas tecnologias digitais;
- Estabeleça uma história clara da mudança (descrição e caso das mudanças que estão sendo feitas) para a transformação digital;
- Adicione uma ou mais pessoas familiarizadas ou muito familiarizadas com as tecnologias digitais à equipe principal - aqui, por exemplo, encaixa o trabalho de um Head de Inovação;
- Os gestores devem incentivar os colaboradores a desafiar as antigas formas de trabalho (processos, procedimentos e cultura);
- Redefina os papéis e responsabilidades dos indivíduos para que eles se alinhem aos objetivos da transformação;
- Ofereça aos colaboradores oportunidades para gerar ideias de onde a digitalização pode apoiar as organizações;
- Estabeleça uma ou mais práticas relacionadas a novas formas de trabalhar (como aprendizado contínuo, ambientes de trabalho físicos e virtuais abertos e mobilidade de funções) - Você já conhece as novas profissões jurídicas? ;
- Envolva os colaboradores em funções de integrador (colaboradores que traduzem e integram novos métodos e processos digitais nas formas existentes de trabalhar para ajudar a conectar as partes tradicionais e digitais dos negócios) para apoiar a transformação;
- Implemente a tecnologia de autoatendimento digital para uso de colaboradores e parceiros de negócios;
- Os gestores devem incentivar seus colaboradores a experimentar novas ideias (como a criação rápida de protótipos e a permitir que os colaboradores aprendam com suas falhas);
- Os gestores devem garantir a colaboração entre as pessoas que trabalham a inovação e a transformação digital, com aqueles que executam funções mais operacionais;
- Envolver os gerentes de inovação tecnológica (gerentes com habilidades técnicas especializadas que lideram o trabalho em inovações digitais, como o desenvolvimento de novos produtos ou serviços digitais) para apoiar a transformação - aqui também pode entrar a figura de Head de Inovação;
- Os gestores devem estimular um senso de urgência para fazer as mudanças da transformação.
- É importante implementar uma cultura guiada por dados (data-driven), para se ter decisões mais acertadas, com o que é chamado de Direito Guiado por Dados.
Outro ponto que também coloca a OAB em perigo é o surgimento das Novas Profissões Jurídicas. Isso porque, para o trabalho em grande parte delas não é necessária a inscrição na Ordem.
Na imagem abaixo você pode ter uma visão geral dessas novas profissões:
O que ocorre é que a receita "tradicional" de como seguir e crescer em uma carreira jurídica dificilmente será ainda a mais adequada em tempos de startups, nova economia, era dos dados. A solução, então, é ampliar o repertório para fora do direito (multidisciplinariedade), abandonar o pensamento jurídico tradicional (com mais tecnologia, design thinking, pensamento "startupês", conhecimento de mercado, futurismo, empreendedorismo etc.) e cuidar as Soft Skills ("habilidades humanas").
Uma importante pesquisa encomendada pela Dell Technologies, para o Institute for the Future (IFTF) revela que 85% dos trabalhos que existirão em 2030 ainda não foram inventados. Isso significa que, dos trabalhos, da forma como você conhece agora, apenas 15% permanecerão.
A leitura que se deve ter disso é o profundo rearranjo que ocorre em nossa sociedade.
Especificamente no campo do Direito, o conhecimento jurídico está cada vez mais acessível às pessoas, em função do rápido e fácil compartilhamento das informações, por todo o mundo, propiciadas pela criação e expansão da internet.
Nesse cenário, o que ocorre é que este conhecimento passa pelo processo de comoditização, portanto, a perder fortemente o seu valor na percepção da sociedade. Assim, ter o conhecimento jurídico apenas, é muito pouco, de modo que os profissionais do Direito precisam investir em aquisição de repertório amplo e variado, sobretudo relacionados à Soft Skills (habilidades humanas), tecnologia e inovação.
O que ocorre é que estas mudanças representam grandes oportunidades para os profissionais do Direito, que podem recriar suas profissões e criarem um repertório próprio.
Os avanços tecnológicos estão criando carreiras jurídicas alternativas e transformando a maneira como o campo jurídico é praticado.
Por outro lado, não nego que o Direito é tradicionalmente lento para se adaptar às mudanças, ainda mais porque os profissionais jurídicos com visão tradicional também são lentos para mudanças e normalmente avessos à tecnologia, ao design, ao empreendedorismo e às inovações, em geral.
Ocorre que essa é uma boa notícia para os que ousarem "virar a chave" desde já, porque trabalhos relacionados à tecnologia abundam neste novo cenário jurídico e muitos outros ainda serão criados.
Para a OAB essa mudança representa perda de inscritos, consequente diminuição de faturamento e relevância, sobretudo em uma realidade cada vez mais comum: o número de juristas que não se sentem representados pela Ordem só aumenta (é o resultado da falta de Transformação Digital, que gera desconexão com os usuários).
Por todo este contexto aqui explicado, é certo que a Ordem dos Advogados do Brasil corre grande perigo de se tornar uma instituição insignificante e irrelevante perante os juristas, caso não se adeque de forma urgente e profunda à Transformação Digital.
Marcílio Guedes Drummond
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