Controvérsias Jurídicas: Por favor, leiam atentamente os autos

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Por @fernandocapez | Jurisdição é a aplicação da vontade da lei ou de quem vai julgar? A persuasão racional é um processo lógico de construção da convicção ou uma fundamentação retórica para justificar a decisão já formada previamente na mente humana? A resposta a essa indagação passa pelo preenchimento de um pressuposto básico do devido processo legal: a leitura atenta dos autos.

Quod non est in actis non est in mundo, o que não está nos autos não está no mundo. Esse brocado originário do Direito romano tem orientado, há séculos, os sistemas judiciais das democracias, nas quais impera o Estado de Direito. Somente fatos discutidos e provas trazidas aos autos sob a égide do devido processo legal podem servir de fundamento para a aplicação da lei ao caso concreto.

Disso decorrem dois deveres ao órgão jurisdicional: 1) atuar com coragem, serenidade e independência, sem se influenciar pelo clamor provocado pela mídia; 2) ler os autos com atenção, examinando com diligência todos os argumentos das partes e as provas produzidas, a fim de formar sua convicção pela detida reflexão dos fatos.

A imparcialidade constitui garantia ao adequado exercício da persecução penal, proporcionando ao jurisdicionado estabilidade e segurança jurídica. Trata-se de paradigma de civilidade necessário ao sistema de distribuição de justiça.

De um lado, a imprensa e as redes sociais contribuem para fortalecer as investigações, de outro, as transformam em verdadeiro espetáculo de incivilidade. A precipitação em apresentar conclusões satisfatórias, leva a medidas cautelares desnecessárias e não raro terminam em trapalhadas processuais, as quais resistem momentaneamente, mas acabam sucumbindo quando batem às portas dos tribunais superiores.

Nessas hipóteses, o processo se reduz a um mecanismo difamatório e veículo de fake news, cuja função de entretenimento colide com sua missão de efetividade. A satisfação do jus puniendi se frustra ante a ineficácia da persecutio criminis. A Justiça promocional centra foco na audiência, sem se importar com o substrato fático e probatório, deixando impunes os reais infratores e aviltando precipitadamente biografias.

O desempenho da atividade persecutória abusiva estimula ações que transbordam os limites da legalidade e impessoalidade e, sem adequado controle correcional, tendem a se repetir, acarretando frustração social, gerada pela deficiente proteção da coletividade.

Uma das causas de iniciativas individuais tresloucadas reside na carência de padrões objetivos de atuação, balizados em uma doutrina institucional fixada pelos órgãos superiores das instituições, sacrificando a efetividade da pretensão punitiva em prol do individualismo autopromocional.

É certo que todo aquele que exerce parcela de poder sem controle tende a abusar do poder, o que exige por parte da legislação um aperfeiçoamento dos mecanismos de controle interno e externo, a fim de assegurar o direito ao processo de apuração sério e comprometido com um pronunciamento final eficaz.

O julgamento público dos casos mais rumorosos é feito antecipadamente e, antes mesmo da instauração do processo, produz um efeito de primazia na formação da convicção dos órgãos jurisdicionais, levando-os inconscientemente a empregar a persuasão racional de forma a justificar a tese já formada mentalmente.

Inquéritos desorganizados e artificialmente volumosos, com peças supérfluas e repetidas, por vezes são utilizados para tornar mais dificultosa sua análise e pressionar o Poder Judiciário a decidir com urgência diante do enorme clamor popular.

Nesses casos, existe o risco de a fundamentação reduzir-se a mera repetição dos argumentos do órgão investigante, mediante o emprego de retórica jurídica como biombo dialético para justificar a decisão já tomada pelo conhecimento antecipado dos fatos.

Dessa situação surgem desdobramentos, estando um deles a merecer especial atenção: a chamada "conta de chegada" na motivação jurisdicional.

Trata-se do processo pelo qual a autoridade, já pressionada por manchetes sensacionalistas e pelas redes sociais, sente-se sem espaço e tempo para a paulatina e gradual formação da sua convicção pessoal, deixando cair a pena, sem analisar os fatos e provas, confiando mais nos argumentos recebidos do que na leitura dos autos, com o objetivo de não frustrar a expectativa criada na sociedade e prestigiar o trabalho dos órgãos de persecução.

O dever constitucional da aplicação da Justiça no Estado democrático de Direito exige rito e garantias processuais, com a finalidade de orientar a bússola do convencimento. A cada novo fundamento, nova prova, nova contestação, vai-se edificando o caminho da justiça, passo a passo, mas tão somente até onde os autos permitem chegar.

O sistema de garantias é abalado quando a decisão é formada antecipadamente, a partir da versão retoricamente impactada na mente do julgador. O contraditório exige que o sino toque dos dois lados para que, da ponderação dos fatos contrastantes decorra a decisão mais equilibrada e próxima da justiça.

Disso resulta perigoso deslocamento do poder soberano do Judiciário aos órgãos investigatórios e à imprensa, transformando o processo em mero instrumento de legitimação da notícia.

É preciso recordar que cabe ao Poder Judiciário a enorme tarefa de promover a equidistante e atenta análise do conteúdo dos autos, deixando de lado a narrativa dos meios de comunicação e reafirmando a sua condição de poder garantidor de um sistema de justiça idôneo e obediente à Constituição. O processo acusatório pressupõe a separação entre o órgão que investiga, que acusa e o que julga.

O verdadeiro Estado democrático de Direito não se projeta com populismo ou personalismos, mas com instituições fortes, serenas e responsáveis.

Para tanto, e para que o processo não se transforme em um desfile de justiceiros, é imprescindível uma tarefa básica a ser cumprida: a leitura atenta dos autos antes da decisão que vai repercutir sobre a vida, o patrimônio e a honra de outra pessoa. Atalhos persecutórios normalmente terminam na estrada da impunidade.

Por essa razão, por favor, leiam os autos.
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Fernando Capez é procurador de Justiça, mestre e doutor em Direito e presidente do Procon-SP
Fonte: Conjur

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