Em julgados recentes, os tribunais superiores vêm entendendo que sim, com base no princípio da indisponibilidade da ação penal de iniciativa pública e do livre convencimento motivado, bem como em uma leitura isolada do artigo 385 do Código de Processo Penal, segundo o qual "nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição".
Ocorre que tal previsão legal, que remonta à edição do Código de Processo Penal nos idos da década de 1940, não se sustenta à luz do sistema processual penal democrático inaugurado pela Constituição Federal de 1988, consagradora dos princípios do contraditório, da ampla defesa e da imparcialidade do julgador.
Com efeito, trata-se de garantias típicas do sistema processual acusatório, cuja premissa básica consiste na distinção clara e necessária entre as funções de acusar e julgar, cabendo ao Ministério Público, por um lado, promover a ação penal pública, e ao juiz natural e imparcial, por outro, atuar nos limites da pretensão acusatória.
Mas não só. O princípio acusatório, que rege o processo penal brasileiro, exige que a acusação revele uma alternativa de solução do caso oposta à alternativa deduzida no exercício do direito de defesa. Acusação e defesa surgem, portanto, com propostas excludentes de sentença, ambas dispostas a buscar a solução da causa, do que se pressupõe a imparcialidade do julgador, igualmente disposto a se fazer convencer por ambas as teses.
Nesse cenário, a legitimação da decisão decorre do contraditório, ou seja, de ter sido construída a partir de um processo dialético, no qual tenha sido garantida a paridade de armas entre as partes para que possam, de fato, convencer o juízo de suas pretensões opostas.
Pois bem. Se, ao final da ação penal, colhida toda a prova, delibera o Ministério Público pela absolvição do réu, evidente que está a pugnar pela improcedência da acusação anteriormente ofertada, concluindo que os elementos indiciários que a sustentaram não se mostraram, após a instrução penal, aptos a fundamentar a condenação que um dia se requereu.
Nesse cenário, a condenação contrária ao pedido ministerial corresponde à evidente violação do princípio da correlação entre sentença e acusação, a qual, por certo, não se limita aos termos da denúncia, mas também à conclusão ministerial ao término da fase de produção de prova. Afinal, o pedido de condenação feito no momento inicial da ação penal, quando do oferecimento da denúncia, não é apto a justificar uma decisão condenatória, que deve ser fundamentada na prova submetida ao contraditório durante o processo.
Assim, ao condenar o acusado em contrariedade a um pedido de absolvição do próprio Ministério Público, pode-se dizer que está o juiz a condenar sem acusação, incutindo-se automaticamente na figura de acusador e perdendo a imparcialidade que dele se espera.
Disso decorre, por certo, inegável violação ao princípio do contraditório, na medida em que, requerendo o Ministério Público a improcedência da denúncia, não mais existirá entre as partes litigantes posições opostas, mas, sim, uma mesma e única pretensão absolutória.
Nesse cenário, subtrai-se do debate processual final a análise das provas que possam ser sopesadas desfavoravelmente ao réu, de modo que eventual sentença condenatória jamais poderá ser considerada fruto de contraditório. Afinal, como a defesa poderá, em sede de memoriais, rebater e se opor a argumentos que não lhe foram apresentados pela parte contrária?
Percebe-se que a discussão em nada se relaciona com o princípio da obrigatoriedade da ação penal. Este nada mais é do que um aspecto do princípio da legalidade, segundo o qual o Ministério Público, como titular da ação penal pública, não pode atuar de forma arbitrária, pautado em considerações de oportunidade ou conveniência, mas, sim, no estrito cumprimento da lei.
Trata-se, portanto, de obrigação de oferecer denúncia sempre que presentes indícios de autoria e da existência da infração penal. Contudo, se a acusação inicialmente formulada se revela, ao final da instrução probatória, infundada aos olhos do próprio órgão responsável pela acusação, cuja independência funcional é garantida pela Constituição, não cabe ao magistrado incutir-se da função acusatória quando da formulação da sentença, como se a indisponibilidade da ação penal para a acusação configurasse possibilidade de condenação criminal de ofício pelo juízo.
Do quanto exposto, sustenta-se que o artigo 385 do CPP, ao autorizar o juiz a proferir sentença condenatória ao arrepio do quanto requerido pelo titular da ação penal, reveste-se de natureza eminentemente inquisitória, incompatível com um sistema acusatório regido pela imparcialidade do julgador, verdadeira garantia fundamental do acusado e requisito essencial à concretização do devido processo legal. Com isso, impõe-se concluir que o referido artigo legal não foi recepcionado pela ordem constitucional inaugurada pela CF/88, merecendo ter sua aplicação afastada pelos tribunais pátrios.
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Isadora Fingermann é sócia na área de Penal Empresarial de TozziniFreire Advogados.
Nathalia Latorre é advogada na área de Penal Empresarial de TozziniFreire Advogados.
Fonte: Conjur
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