Estatuto da Advocacia: Quais os riscos da colaboração premiada para advogados?

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Via @jotaflash | Alguns veículos especializados repercutiram largamente a limitação imposta pela Lei 14.365/2022 à celebração de acordos de colaboração premiada por advogados e advogadas. A citada lei altera o Estatuto da Advocacia e veda “ao advogado efetuar colaboração premiada contra quem seja ou tenha sido seu cliente” (artigo 7º, §6, inciso I), sob penas das quais se falará a seguir.

Essa alteração legislativa questiona e expõe um possível dilema ético e jurídico para os que se encontram na difícil situação de terem participado de esquemas ilícitos de seus clientes ou com seus clientes. Nem tudo que é legal é ético. Nem tudo que é ético é legal.

A alteração legislativa recentemente seguida no tempo de uma decisão da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça considerou ilícita a delação feita por advogado contra cliente cuja causa encontra-se, ou se encontrava, sob o seu patrocínio, sobre fatos ocorridos anteriormente à reforma do Estatuto da Advocacia.

Deixando-se de lado a eventual possibilidade de reforma da decisão da 5ª Turma do STJ em questão, bem como o fato de não ter efeito erga omnes, pelo menos neste momento, será o dilema em questão um verdadeiro dilema ético? Será um dilema jurídico? Será realista? Ou será um “dilema do biscoito Tostines”?

Em que medida o advogado ou a advogada deveria fazer tão difícil escolha entre eventualmente delatar um cliente, por meio do instituto legal da colaboração premiada, e ser punido disciplinarmente por seus pares e mais ou não delatar e ser punido por ter participado de crimes ao lado ou com um cliente, já que a lei penal pode ser aplicada de qualquer forma, com atenuantes ou agravantes, a ele ou a ela?

Sob outro ângulo, quais deveriam ser os limites ao sigilo profissional dos advogados? Tal obrigação pode ser limitada ou ela goza da mais ampla liberdade, quase que absoluta? O sigilo profissional dos advogados serve à Justiça e é, portanto, de interesse público. Isto não se deve esquecer.

Comparativamente, na França, em decisão recente de 2020, a Corte de Cassação (‘Cour de Cassation’, equivalente ao Supremo Tribunal Federal) decidiu, num contencioso criminal envolvendo a apreensão de correspondências de uma empresa, sendo que dentre as correspondências apreendidas havia correspondências entre a cliente e seu advogado, que o juiz é obrigado a verificar se as correspondências apreendidas estavam, de fato, relacionadas às atividades de defesa do cliente. Lá, não se pode falar em proteção ao sigilo profissional quando o litígio envolve aspectos criminais[1].

Voltando às questões nacionais, tem-se, de um lado, a reforma do Estatuto da Advocacia, reforçando que a advocacia não pode se prestar a abrigar ilegalidades e ilicitudes de quem quer que seja. Não é uma inscrição no órgão de classe, a famosa “carteirinha vermelha” dos advogados, que protegerá quem opta por não ser proativo, informando-se, aderindo à defesa da instituição e zelando por ela. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) é de todos nós. Merece respeito e proteção.

De outro lado, há situações que podem estar sujeitas ao precedente citado da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, anteriores à reforma do Estatuto da Advocacia, que talvez possa retroagir em benefício de réus em casos concretos. Talvez.

Ainda, mas sob outra perspectiva, pode haver o interesse potencial de advogados inscritos na OAB de correrem mais riscos, além de terem aderido aos atos ilícitos de clientes, pois o apetite a riscos é personalíssimo.

Pode acontecer do advogado querer sacrificar seu futuro profissional, já que na vigência do atual Estatuto da Advocacia, a eventual punição por violação de seu dever de sigilo nos termos do incido III do artigo 35 do Estatuto da Advocacia (exclusão), ainda que associada a uma punição sob o art. 154 do Código Penal (i.e., detenção de 3 meses a 1 ano ou multa, condicionada ainda a representação), pode até ser eventualmente mais leve do que a punição por outros ilícitos penais.

São dilemas ruins, na verdade, para os envolvidos e talvez até permeados de premissas morais e éticas equivocadas. A advocacia é uma instituição. É essencial à sociedade democrática. Sem ela não se faz justiça e, como dito anteriormente, há interesse público na manutenção do sigilo profissional. E, é função de todos proteger a instituição, inclusive sob o ponto de vista reputacional.

Não faltam ferramentas acessíveis para que os advogados possam proteger a advocacia. Por exemplo, a OAB-SP disponibiliza, gratuitamente, webinars, palestras, cursos, cartilhas, manuais, etc. sobre temas de governança, integridade e compliance, que estão facilmente acessíveis de qualquer telefone, tablet ou computador com acesso à internet. E, parte considerável desses materiais ficaram e ficarão gravados e disponíveis com igual facilidade de acesso a todos os interessados, advogados ou não.

Quando a nova gestão da OAB-SP decidiu criar a Comissão Permanente de Governança e Integridade, sabia exatamente o que estava fazendo: capacitar continuamente a advocacia para lidar inclusive com a gestão de mudança de paradigmas trazida pelos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), pelas práticas Environmental, Social & Governance (ESG), cuja sigla corresponde à abreviatura em português Ambiental, Social e Governança (ASG), num mundo que se atualiza e se desenvolve em alta velocidade.

É a mesma gestão que, com apoio da Comissão Permanente de Governança e Integridade e de outras Comissões, está desenvolvendo um programa de integridade, que não será o primeiro de todas as seções da OAB no Brasil, mas que contará com o maior número de inscritos no país e talvez até mesmo no mundo.

Entre educação continuada gratuita e de fácil acesso, programa de integridade e processo de melhoria contínua, os incentivos e os benefícios são grandes demais para que nenhum advogado e nenhuma advogada precisem enfrentar o dilema, totalmente evitável, de ter de optar entre as sanções disciplinares e até legais por violação de dever e outras punições penais por eventual envolvimento em esquemas ilícitos de clientes.
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[1] Cour de cassation, criminelle, Chambre criminelle, 25 novembre 2020, 19-84.304. Disponível em: https://www.legifrance.gouv.fr/juri/id/JURITEXT000042619502?tab_selection=all&searchField=ALL&query=19-84304+&page=1&init=true.
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*LIGIA MAURA COSTA – Professora titular na FGV-EAESP. Coordenadora geral do FGVethics. Bacharel em Direito e livre-docente pela Faculdade de Direito da USP. Doutora e mestra pela Universidade de Paris. Presidente da Comissão de Governança e Integridade da OAB-SP. Advogada

*ROBERTO N. P. DI CILLO – Senior Research Fellow do FGVethics. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da USP. LLM pela University of Notre Dame. Vice-Presidente da Comissão de Governança e Integridade da OAB-SP. Advogado
Fonte: www.jota.info

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