Juízo das garantias: uma necessidade urgente para o processo penal brasileiro

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Via @consultor_juridico | O primeiro semestre do ano de 2023 provoca a reflexão da comunidade jurídica acerca de matérias que devem ser enfrentadas pelo Supremo Tribunal Federal. Como guarda da Constituição, a Corte Constitucional brasileira ganha protagonismo frente à notória crise institucional pela qual o país vem passando.

Os comentários discorridos nestas apartadas linhas têm conotação tão somente jurídica e não visam a demonstrar apoio político-ideológico a qualquer partido ou grupo político. O que se procura é expor uma visão jurídica tendo como amparo o texto constitucional, com o intuito de concretizar direitos e garantias fundamentais.

Matéria relevante, cuja constitucionalidade está sendo questionada no STF: o juízo das garantias, instituído pela Lei nº 13.964/2019, que deve ter uma urgente e especial atenção. O juízo das garantias é uma prática recorrente em diversos países e privilegia a imparcialidade do magistrado. O instituto fulmina com a prevenção do juiz que atuou da fase investigativa, deliberando sobre medidas invasivas voltadas à produção de provas, como quebras de sigilo, buscas e apreensão, etc.

Porém, a adoção do juízo das garantias foi objeto de quatro ações diretas de inconstitucionalidade ajuizadas pela AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros), pela Conamp (Associação Nacional dos Membros do Ministério Público) e partidos políticos com representatividade no Congresso. A relatoria das ações cabe ao ministro Luiz Fux que, na qualidade de presidente do STF, deferiu a medida cautelar, ad referendum do Plenário, em 22 de janeiro de 2020.

Passados três anos, o Supremo ainda não apreciou a medida cautelar, contrariando o que dispõe o artigo 97 da Constituição que atribui aos tribunais (ou respectivos órgão especiais) a competência para declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público. É a observância da chamada reserva de plenário. Não parece razoável uma decisão monocrática deferindo uma medida cautelar em ação direta vigorar por mais de três anos. É algo exótico, para não dizer esdrúxulo. O ministro Luiz Fux, à época vice-presidente do STF (no exercício da presidência), deferiu a cautelar em período de recesso forense, o que se mostra plausível, desde que a decisão monocrática fosse referendada (ou não) pelo Plenário da Suprema Corte.

Sob a ótica material, a decisão do relator passa por uma sucinta digressão sobre o que seriam normas processuais e normas de organização judiciária. Entende o relator que se trata de norma de natureza híbrida que aponta para a aplicação do Artigo 96, inciso II, da Constituição que impõe a iniciativa a órgãos do Poder Judiciário quanto a proposições que versem sobre organização judiciária. Tem-se, portanto, uma suposta inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa.

Tal fundamentação é carente, na medida em que o juízo das garantias estabelece mera regra de impedimento àquele magistrado que atuou na fase investigativa. Assim, esse magistrado não poderia atuar na causa penal. Busca-se com o juiz das garantias a desejada imparcialidade do magistrado que travará contato com as provas produzidas no procedimento em contraditório, definindo de forma clara a função do juiz (equidistância das partes), do Ministério Público, promovendo a ação penal e da defesa.

Um argumento falacioso para fundamentar a decisão é a de que a nova lei criaria dois novos órgãos jurisdicionais distintos: o juízo das garantias e o juízo da instrução; causando uma verdadeira desordem no Judiciário. Ademais, não haveria a maturação legislativa suficiente para a adoção da medida. Não deve prosperar essa afirmação pois a lei visa, unicamente, a garantir que todo cidadão submetido a uma persecução criminal tenha um juiz imparcial para apreciar as provas apresentadas e submetidas ao contraditório. Nada mais! Não há qualquer criação de órgão jurisdicional, mas, tão somente, o comando para o estabelecimento de regras de organização judiciária capazes de aplicar a regra de impedimento. Aliás, em tempos de ampla adoção de meio de tecnologia da informação, essa medida é simples. Ao argumento da falta de maturação legislativa, não cabe ao Poder Judiciário concluir sobre deficiências (que não é o caso) do processo legislativo. Se o devido processo legislativo foi observado, é o que basta para que a medida entre em vigor.

Também merece repulsa o argumento de que a adoção do juízo das garantias geraria um incremento orçamentário sem definição da fonte dos recursos. Igualmente descabido o argumento, pois insere-se uma mera regra de impedimento do órgão jurisdicional que travou contato com a prova produzida na fase de inquérito policial. Em contrapartida, aumentou-se o limite temporal da pena de prisão de 30 para 40 anos, o que gera um aumento do custeio das unidades prisionais, sem qualquer declaração de inconstitucionalidade.

Dentro de uma lógica garantista, o Direito Penal e o Processo Penal devem ter como finalidade principal limitar o poder punitivo estatal conferindo ao acusado garantias fundamentais, para que haja imparcialidade do magistrado e obediência aos ditames do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório. É essencial para o sistema acusatório, nos dizeres de Luigi Ferrajoli, a separação das funções de acusar, defender e julgar. A atuação do Judiciário na fase pré-processual somente se revela admissível, com o propósito de proteger as garantias fundamentais dos investigados [1]. Luis Geraldo Lanfredi segue a mesma linha ao asseverar que o juiz na fase pré-processual cabe dar efetividade às garantias processuais e à legalidade da atuação policial (ação investigativa) e do Ministério Público (ação de acusação) [2]. A imparcialidade do juiz "deriva não da relação do juiz com as partes, mas de sua prévia relação com o objeto do processo" [3].

Enfim, o que se vislumbra com a decisão é a manutenção de uma mentalidade inquisitorial que imperou durante os mais de 80 anos de vigência do Código de Processo Penal. Há a urgente necessidade de adoção de um modelo acusatório de processo, mais alinhado ao Estado Democrático de Direito, paradigma constitucionalmente albergado desde 1988. Ademais, nunca é demais lembrar que o Brasil é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos que define, no seu Artigo 8º, como garantia de qualquer acusado o julgamento por um juiz imparcial [4]. Portanto, um magistrado que interveio na fase investigativa não deve ser considerado apto para julgar uma controvérsia penal. Logo, é urgente que o Supremo julgue essas ações para firmar a garantia do cidadão ser julgado por um juiz imparcial.
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[1] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón: Teoría del Garantismo Penal. 3ª ed., Madrid: Trotta, 1998. p. 567.

[2] LANFREDI, Luís Geraldo S. Juez de garantías y sistema penal. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 204/206.

[3] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Direito ao julgamento por juiz imparcial: como assegurar a imparcialidade objetiva do juiz nos sistemas em que não há a função do juiz de garantias.

[4] Disponível em <https://www.conjur.com.br/dl/pacto-san-jose-costa-rica.pdf>. Acesso em 4 abr. 2023.
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Por Rodrigo Medeiros da Silva, é mestre em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas.
Fonte: Conjur

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