Contudo, o teor das reportagens explicava que, primeiramente, foram presas justamente algumas pessoas que procederam ao recadastramento, e não as que não o fizeram. Mas por qual razão seriam presas as pessoas que agiram conforme a determinação legal?
Na verdade, essas pessoas que foram detidas já tinham contra si mandados de prisão expedidos por dívidas de pensão alimentícia ou crimes diversos — homicídios, roubos, violência doméstica, dentre outros — e, com o recadastramento, acabaram por informar às autoridades o seu endereço correto. Assim, com o cruzamento de dados — consulta ao sistema de mandados de prisão e atualização dos endereços — foi possível à Polícia Federal chegar às pessoas foragidas da justiça.
Ressalta-se que, para ter autorização de posse, os CACs necessitam preencher determinados requisitos, dentre eles, não ter investigações criminais ou processos criminais em curso, razão pela qual, além de serem presos, aqueles que respondem por crimes terão os registros cancelados.
Quanto à notícia de que também estão sendo presas pessoas que deixaram de proceder ao recadastramento, somente podemos atribuir a informação a algum erro: ou erraram os veículos de comunicação, ao distorcer, ainda que involuntariamente, as informações, ou, caso de fato pessoas estejam sendo presas em razão da não regularização, errou a Polícia Federal, que em nenhuma hipótese poderia prender, nem mesmo em flagrante, os possuidores de armas que deixaram passar o prazo. Ou, ainda, se foram solicitados mandados de prisão preventiva, erraram os juízes, que procederam em desconformidade com o entendimento jurisprudencial acerca do tema.
Explicamos: o crime de posse irregular de arma de fogo está previsto no artigo 12 do Estatuto de Desarmamento (Lei 10.826/2003). Segundo a Lei, é crime possuir ou manter a guarda de arma de fogo, acessório ou munição de uso permitido, em desacordo com determinação legal ou regulamentar.
Logo, não é proibido possuir arma de fogo, contudo, para possuir uma, o cidadão precisa preencher determinados requisitos estabelecidos pelo Poder Executivo. O que a lei pretende é exercer um controle sobre as armas existentes e permitir que os órgãos de segurança pública, sobretudo a Polícia Federal, consigam monitorar quem são os possuidores de armas e onde estão essas armas.
Também não podemos dizer que o governo atual revogou os direitos dos CACs de possuírem as suas armas. O que houve — ao menos até agora — foi apenas a edição de um decreto com alterações regulamentares e, no que importa ao assunto aqui debatido, modificando as regras de posse para os CACs.
Para melhor compreensão, é importante trazer ao conhecimento do leitor quais são os sistemas de controle de arma de fogo existentes no Brasil: o Sinarm (Sistema Nacional de Armas) é instituído no âmbito da Polícia Federal e o Sigma (Sistema de Gerenciamento Militar de Armas) é instituído no âmbito do Exército.
Até o início de 2023, as armas de fogo, acessórios e munições dos CACs eram registradas no Sigma. Importante esclarecer que tanto o primeiro decreto que veio a regulamentar o Estatuto do Desarmamento, assinado pelo presidente Lula, quanto o decreto que o revogou, em 2019, assinado pelo então presidente Jair Bolsonaro, estabeleciam o Sigma como o sistema responsável para o registro das armas dos CACs.
Entretanto, o decreto de 2019 flexibilizou, em muito, as regras para o registro de armas pelos CACs, tornando-as menos rigorosas e permitiu a aquisição de mais armas e munições por colecionadores, atiradores esportivos e caçadores. Assim, o novo governo identificou uma sobrecarga no Sigma, o que deixou o exército sem condições de fiscalizar o avassalador número de armas e munições registrados em território nacional desde a instituição da referida norma.
Assim é que, logo no início de 2023, o novo governo optou por transferir a fiscalização das armas dos CACs para a Polícia Federal, determinando o cadastro das armas no Sinarm até o dia 3 de maio último.
Tudo isso dito, parece, ao leitor desavisado, que quem não regularizou a arma dentro do prazo passou a praticar o crime previsto no artigo 12 do Estatuto do Desarmamento, já que, a partir do dia 4 de maio, é possuidor de arma de fogo, acessório ou munição em desacordo com o novo decreto. Ocorre que entendimento dos tribunais[1], em especial do Superior Tribunal de Justiça[2], que é o responsável por uniformizar a aplicação das leis federais em nosso país, é diverso.
Os juízes não estão presos à literalidade da lei, pelo contrário, eles a interpretam de modo a não tornar o Direito Penal um palco de injustiças pela estigmatização do cidadão com a pecha de criminoso por fatos irrelevantes.
Não é difícil compreender o entendimento do STJ: basta entender o sentido da Lei, e é certo que a sua finalidade é impedir que as pessoas possuam armas, acessórios e munições sem que o Estado tome conhecimento da situação. No Direito Penal, os crimes servem para tutelar bens jurídicos relevantes ao bom convívio social (o homicídio tutela a vida, o furto tutela o patrimônio, o peculato tutela a administração pública). O crime de posse irregular de arma de fogo tutela a segurança pública.
Assim, o cidadão que era autorizado a possuir armas, com registro no Sigma, comunicou satisfatoriamente às autoridades sobre a sua posse, cumprindo as regras existentes no momento do registro, sendo certo que o mero descumprimento de realização de novo registro, no Sinarmnão tem o condão de lesionar, em nenhum grau ou modalidade, o bem jurídico tutelado, vez que não se expôs a segurança pública a qualquer risco: o Estado tinha — e sempre teve — ciência de que o cidadão possuía o armamento registrado no Exército. Importante destacar, ainda, que desde o decreto de 2004 há a determinação de comunicação de registros entre o Sigma e o Sinarm, de modo que a Polícia Federal pode, portanto, acessar o Sigma.
Um fato, para ser criminoso, não basta corresponder ao texto legal: ele tem que parecer criminoso. Logo, os fatos que, em uma leitura superficial, correspondem ao texto legal, mas, quando analisados, não indicam ofensa a qualquer bem jurídico, são considerados atípicos (ou seja, não são tipos legais penalmente relevantes — leia: não são crimes). Essas condutas são consideradas pela doutrina como ausentes de tipicidade material, o que significa que apenas formalmente se parecem com um tipo penal (crime), mas materialmente não possuem relevância porque não incrementam o risco à coletividade.
Pela ótica dos princípios aplicáveis ao Direito Penal, temos o princípio da lesividade, que impede "a incriminação de condutas desviadas que não afetem qualquer bem jurídico"[3], e também o princípio da intervenção mínima[4], segundo o qual o Estado não pode intervir em situações que não reclamam a atuação repressiva criminal.
O Superior Tribunal de Justiça, há muito, vem considerando que a ausência de renovação do registro de armas de fogo não é fato relevante, do ponto de vista do Direito Penal, e pensamos que, com a edição do decreto de 2023, este entendimento permanecerá (ressalva-se aqui a relevância administrativa, já que a ausência de registo adequado poderá, em alguma medida, gerar consequências administrativas aos CACs, mas nunca uma consequência penal).
______________________________
[1] Apelação Crime Nº 70061056461, Quarta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Aristides Pedroso de Albuquerque Neto, Julgado em 16/10/2014; Apelação Crime Nº 70062851001, Quarta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Aristides Pedroso de Albuquerque Neto, Julgado em 19/03/2015, Apelação Crime Nº 70062608419, Quarta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rogerio Gesta Leal, Julgado em 12/02/2015; Apelação Crime Nº 70061953774, Quarta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ivan Leomar Bruxel, Julgado em 12/02/2015; Apelação Crime Nº 70061535852, Quarta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Newton Brasil de Leão, Julgado em 18/12/2014; Apelação Crime Nº 70061681367, Quarta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rogerio Gesta Leal, Julgado em 06/11/2014; - HC: 20140906358, Relator: Salete Silva Sommariva, Data de Julgamento: 12/01/2015, Segunda Câmara Criminal, Tribunal de Justiça de SC; HC 1311169-8, Rel.: Luís Carlos Xavier – Unânime, Data de Julgamento: 29/01/2015, 2ª Câmara Criminal, Data de Publicação: DJ: 1513 25/02/2015, 2ª Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do PR; Apelação Crime Nº 70064125263, Quarta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Newton Brasil de Leão, Julgado em 02/07/2015; HC: 13427160, Relator: José Carlos Dalacqua, Data de Julgamento: 26/03/2015, 2ª Câmara Criminal, Data de Publicação: DJ: 1540 07/04/2015, Tribunal de Justiça do PR; HC: 13354873,, Relator: José Mauricio Pinto de Almeida, Data de Julgamento: 19/03/2015, 2ª Câmara Criminal, Data de Publicação: DJ: 1540 07/04/2015, Tribunal de Justiça do PR; Habeas Corpus Nº 70064315534, Quarta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Newton Brasil de Leão, Julgado em 07/05/2015.
[2] “Na espécie, o paciente foi denunciado pela suposta prática da conduta descrita no art. 12 da Lei n. 10.826/2003, por possuir irregularmente um revólver marca Taurus, calibre 38, número QK 591720, além de dezoito cartuchos de munição do mesmo calibre. 3. Todavia, no caso, a questão não pode extrapolar a esfera administrativa, uma vez que ausente a imprescindível tipicidade material, pois, constatado que o paciente detinha o devido registro da arma de fogo de uso permitido encontrada em sua residência - de forma que o Poder Público tinha completo conhecimento da posse do artefato em questão, podendo rastreá-lo se necessário -, inexiste ofensividade na conduta. A mera inobservância da exigência de recadastramento periódico não pode conduzir à estigmatizadora e automática incriminação penal. Cabe ao Estado apreender a arma e aplicar a punição administrativa pertinente, não estando em consonância com o Direito Penal moderno deflagrar uma ação penal para a imposição de pena tão somente porque o indivíduo - devidamente autorizado a possuir a arma pelo Poder Público, diga-se de passagem - deixou de ir de tempos em tempos efetuar o recadastramento do artefato.” (HC 294.078/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado em 26/08/2014, DJe 04/09/2014)
[3] BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 11ª edição, março de 2007, p. 94.
[4] “Como a lei penal atinge o homem em seus bens mais sagrados, a lei penal apenas ‘conveniente’ passa a ser materialmente injusta, por afetar bens da mais elevada hierarquia axiológica, sob a alegação de proteger bens de menor dignidade. A desproporção entre ofensa e castigo, a par de evidente, demonstra-se materialmente injusta.
Toda a intervenção, além dos limites da necessidade, desfigura o verdadeiro direito penal, compreendido apenas como uma indispensável atividade sancionatória do Estado.
Em consequência, há de se entender que o dever do Estado, ao estabelecer as normas penais, deve subordinar-se ao princípio da intervenção mínima, delimitado pelos critérios da necessidade e da realização da justiça substancial, punindo penalmente apenas aqueles que tenham atentado contra bens essenciais à vida social.” (OLIVEIRA, Marco Aurélio Costa Moreira de. “O direito penal e a intervenção mínima” in Direito Penal, v.1: Alberto Silva Franco e Guilherme de Souza Nucci organizadores. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 447).
______________________________
Estevão Ferreira de Melo é advogado criminalista, Mestre em Direito Processual Penal pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
Fonte: Conjur
Postar um comentário
Agradecemos pelo seu comentário!