As Forças Armadas, o encostamento e os excluídos: a perpetuação das desigualdades no sistema militar brasileiro

forcas armadas encostamento excluidos perpetuacao desigualdades sistema militar brasileiro
Via @januarioadvocacia | O ambiente militar sempre foi conhecido pela sua ênfase no rigoroso cumprimento de ordens, leis e regulamentos. Nas Forças Armadas, que incluem a Marinha do Brasil, o Exército Brasileiro e a Aeronáutica, a estrutura organizacional é fundamentada na hierarquia e na disciplina. Esses princípios são essenciais para garantir o funcionamento eficaz das instituições militares e para manter a ordem e a segurança necessárias para o cumprimento das missões atribuídas.

As Forças Armadas destinam-se a defender a Pátria e a garantir os poderes constituídos, a lei e a ordem. No entanto, no cenário atual tem sido motivo de preocupação a conduta das autoridades militares, que ignoram ordens judiciais e se desviam da finalidade da qual deveriam agir, violando justamente a lei e a ordem democrática, com a finalidade de prejudicar pobres jovens que ingressam no serviço militar buscando por uma ascensão social e econômica.

O impacto social e econômico do serviço militar obrigatório

É importante destacar que as Forças Armadas são compostas tanto por militares de carreira quanto por militares temporários, sendo que estes últimos representam mais da metade dos militares em serviço ativo. A grande maioria dos jovens que optam pelo serviço militar temporário são provenientes de camadas sociais de baixa renda, em busca de oportunidades e segurança que o serviço militar pode oferecer. Aqui denominados de minoria social, os temporários e praças sem estabilidade constituem a maioria em números absolutos dentro das Forças Armadas, mas sem qualquer expressão, seus anseios não importam.

É fato que, não se vê filhos de autoridades prestando serviço militar obrigatório ou optando pela carreira militar, uma vez que possuem acesso a educação de qualidade e oportunidades profissionais diversas, estes sempre terão condições de alcançar sucesso profissional longe da carreira das armas, a qual exige sacrifícios e nenhum reconhecimento.

O licenciamento e a precariedade dos direitos sociais

É verdade que a UNIÃO necessita da mão de obra de militares temporários devido à especialização que esses profissionais possuem em diversas áreas essenciais para compor os quadros das Forças Armadas. Da mesma forma, os que ingressam como praças e oficiais por meio do serviço militar obrigatório desempenham um papel crucial, sendo engajados e reengajados conforme permitido pela legislação vigente.

A presença de profissionais temporários e aqueles que entraram por meio do serviço militar obrigatório enriquece as Forças Armadas com diversas habilidades e conhecimentos. A presença dos militares temporários garante que as Forças Armadas estejam devidamente preparadas para cumprir suas mais diversas missões.

Portanto, a contratação de militares temporários atende uma necessidade das Forças Armadas e é um excelente negócio para a UNIÃO, pois, eles oneram bem menos os cofres públicos, pois, servirão por um período máximo de 8 (oito) anos, e ao término desse período são licenciados e passam a integrar a reserva não remunerada das Forças Armadas.

Após o licenciamento esses militares recebem uma compensação pecuniária, que significa 1 (uma) remuneração mensal por ano de efetivo serviço prestado, excluído o período do serviço militar obrigatório, e o tempo de atividade e as contribuições recolhidas para a pensão militar serão transferidas para o Regime Geral da Previdência Social.

O “encostamento” e a exclusão social dos militares temporários

É importante destacar que a jornada dos militares temporários nas Forças Armadas deveria ser uma oportunidade positiva para jovens de classes econômicas mais baixas iniciarem suas carreiras profissionais. No entanto, é lamentável constatar que, ao contrário do que é divulgado nas propagandas para atrair jovens a se alistarem, existe uma realidade oculta e desafiadora que não é revelada a esses jovens.

Essa falta de transparência pode acabar resultando em uma armadilha para aqueles que buscam ingressar nas Forças Armadas como uma forma de ascensão social. É fundamental que haja clareza e transparência em relação às condições e perspectivas reais oferecidas aos militares temporários.

E o que não é contado a esses jovens? É que se esse jovem ou essa jovem vier a ser acometido(a) de alguma doença e/ou lesão, ainda que decorrente do serviço, que exija afastamento do trabalho para tratamento por um prazo superior a 90 (noventa) dias, consecutivos ou não, este jovem será excluído das fileiras e mantido “encostado” à organização militar apenas para tratamento médico, sem direito à remuneração.

É realmente surpreendente como a injustiça persiste em situações como essa. No século XXI, é inaceitável que os militares temporários e praças sem estabilidade sejam tratados como cidadãos de segunda classe, especialmente considerando a evolução social e legal que ocorreu ao longo dos anos. É perturbador perceber que em alguns casos, a falta de amparo social e a falta de atenção do Poder Judiciário às questões dos menos favorecidos perpetuam uma realidade desigual e prejudicial.

Os militares temporários são importantes para as Forças Armadas, estão ali lado a lado dos militares de carreira prestando um serviço muitas das vezes superior ao prestado pelo militar oriundo de Escolas Militares, no entanto, quando acometidos de doenças, são tratados como se fossem sub-humanos, uma categoria sem direitos sociais, vítimas de discriminação e preconceitos, que são tratados na medida de sua utilidade prática.

O meu falecido sogro já dizia: “no quartel tem barriga de muitas mães” (e ele nem foi militar), referindo-se ao fato de que tem gente de toda índole. A diversidade de pessoas e personalidades dentro do ambiente militar, conforme mencionado pelo meu falecido sogro, destaca a complexidade e os desafios presentes neste contexto. É fundamental que haja um equilíbrio entre a disciplina e a hierarquia necessárias para o bom funcionamento das Forças Armadas e o respeito e cuidado com os direitos e o bem-estar dos militares que dedicam suas vidas ao serviço militar.

É realmente impressionante como os oficiais com autoridade para editar normas podem ter um impacto significativo nos direitos sociais e no bem-estar dos militares sob seu comando. É desconcertante perceber como podem direcionar seus esforços para prejudicar a própria classe militar, excluindo-os do direito à proteção social, como o que ocorreu com a Lei nº 13.954, de 2019. Depois, alguns Comandantes em suas formaturas ousam ainda falar em "Família Militar" como se realmente agissem em prol desse conceito. É fundamental que líderes militares ajam de forma transparente e coerente com os princípios de cuidado e respeito pelos seus subordinados.

Alguns indivíduos de mentalidade limitada podem sugerir, como já ouvi várias vezes, que militares temporários próximos do licenciamento fingem estar doentes para não serem excluídos, tentando enganar o sistema. Não nego que existam militares que possam simular incapacidade para obter a reforma ou prolongar seu tempo de serviço nas Forças Armadas. Apesar de casos similares no INSS, onde ocasionalmente vemos segurados fraudando aposentadorias, o governo não decretou a extinção das aposentadorias e do auxílio-doença como fez no contexto das Forças Armadas.

A discriminação e a necessidade de reforma nas políticas militares

Essa discriminação foi possibilitada durante o governo Bolsonaro, onde os militares ganharam destaque nacional e expandiram sua influência para outros poderes da república. No legislativo, essa influência foi evidenciada pela promulgação sem debate da Lei 13.954, de 2019, que permitiu o "descarte" de militares temporários por meio da implementação do "encostamento". 

Nesse sistema, encostamento, militares afastados por motivos médicos por mais de 90 dias perdem seu vínculo com as Forças Armadas, tendo direito apenas ao tratamento médico. Esta abordagem desconsidera as outras necessidades essenciais de um cidadão doente, como alimentação, vestuário, transporte, despesas com medicação e outras necessidades básicas, como se o dinheiro fosse simplesmente aparecer do nada para suprir essas necessidades do cidadão ou cidadã desligado(a) das fileiras militares.

No Poder Judiciário, é possível observar, por meio da análise de certas decisões judiciais, um alinhamento evidente de alguns membros aos interesses da administração militar. Apesar das garantias constitucionais de proteção à dignidade da pessoa humana, igualdade e direitos sociais, em algumas ocasiões leis hierarquicamente inferiores são aplicadas como se tivessem uma valoração jurídica superior à Constituição Federal.

O instituto do “encostamento” é de fato altamente questionável e parece refletir uma mentalidade de manutenção de privilégios em detrimento da maioria dos integrantes das Forças Armadas. A sua origem num governo com forte presença militar levanta questões sobre a manutenção de benefícios para uma minoria em detrimento da grande maioria dos membros que realmente trabalham.

É fato que nenhuma outra classe de trabalhadores enfrenta a falta de amparo previdenciário como os militares temporários. Enquanto os segurados do INSS, ao serem atingidos por doenças ou acidentes e temporariamente incapazes de trabalhar, mantêm seu vínculo empregatício e têm direito ao afastamento remunerado, os militares temporários e praças sem estabilidade acabam sendo excluídos das Forças Armadas, ficando literalmente à margem da sociedade. 

Essa disparidade na proteção social para militares temporários em comparação com outros trabalhadores é injusta e coloca esses indivíduos em uma situação vulnerável. É essencial que sejam feitas revisões nas políticas existentes para garantir que todos os trabalhadores, incluindo os militares temporários, tenham acesso a um amparo previdenciário adequado em caso de incapacidade temporária para o trabalho.

Com certeza, o instituto do “encostamento” não é a melhor solução para militares doentes, nem para a sociedade como um todo. Excluir um cidadão doente das Forças Armadas nessas circunstâncias é um ato de crueldade e insensibilidade, pois nenhum empregador no setor civil provavelmente irá contratar alguém em tratamento médico. Isso acaba criando problemas adicionais para a família do militar afetado.

É preocupante e angustiante imaginar entregar um filho saudável para servir à Nação e, em troca, receber um filho incapacitado para o trabalho sem qualquer amparo adequado. Como pai ou mãe, é difícil não se sentir indignado e triste diante dessa situação. A história do Soldado Francisco de Marabá (https://youtu.be/e0hr4-88XHY?si=pF7EOMGt4Rmq7HeM), que foi licenciado em estado de tetraplegia e posteriormente excluído e "encostado" (hoje paralítico), é extremamente comovente e exemplifica os impactos desumanos dessa política. É essencial que casos como esse sejam amplamente conhecidos para promover reflexão e mudanças significativas no tratamento e respeito aos militares que enfrentam condições de saúde adversas.

Com certeza, a prática de excluir cidadãos doentes e em tratamento médico das Forças Armadas precisa ser urgentemente revista. Essa exclusão social com base no vínculo temporário com as Forças Armadas é uma clara afronta à Constituição Federal, que tem como um de seus fundamentos básicos a dignidade da pessoa humana. É essencial que sejam feitas mudanças para garantir que os militares em situações de saúde adversas recebam o devido amparo e respeito, em conformidade com os princípios constitucionais.

É lamentável ver que as autoridades militares estiveram diretamente envolvidas na implementação do “encostamento”. Parece que esses indivíduos, homens velhos, não compreenderam o verdadeiro propósito de ocupar posições de autoridade. O poder simbolizado pelo "bastão de comando" não deveria ser utilizado em benefício próprio, mas sim para o bem comum. Ao desviarem-se de padrões morais, legais e éticos, permitindo a criação de situações injustas, essas autoridades falharam em obedecer aos valores cristãos. Consequentemente, deverão arcar com as consequências de suas ações, que cedo ou mais tarde virão.

Em conclusão, é esperado que nossos parlamentares corrijam as injustiças decorrentes da Lei nº 13.954, de 2019. Não é aceitável permitir a criação de uma categoria de militares semi cidadãos dentro das Forças Armadas. É crucial que essas questões sejam trazidas à tona, debatidas e que se promovam mudanças significativas para garantir a equidade e justiça para todos os envolvidos. A busca pela igualdade de tratamento e respeito aos direitos e dignidade de todos os militares é essencial para uma sociedade justa e inclusiva.

Gostou do artigo? Curta, comente e compartilhe!

Wolmer de Almeida Januário é bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (2000), foi soldado da Força da Aérea Brasileira nos anos de 1985/1986 (AFA), segundo-sargento reformado do Exército Brasileiro (EsSA 1990), advogado inscrito na OAB/SP sob nº 398.062, é especialista em direito previdenciário militar, é o fundador do Escritório Januário Advocacia, empresário do setor de metalurgia, produtor rural e palestrante.

Wolmer de Almeida Januário
Advogado OAB/SP 398.062
E-mail: wolmer.januario@januarioadvocacia.com.br
Instagram: @wolmerjanuario 

0/Comentários

Agradecemos pelo seu comentário!

Anterior Próxima