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Histórias da advocacia: advogado autista vendeu água para concluir curso e hoje atua pela causa

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Via @portalmigalhas | Nem sempre a trajetória de um advogado começa pelos bancos da faculdade. Foi vendendo água nas ruas de Fortaleza, após perder tudo o que tinha em um negócio frustrado de sorvetes, que Tonynho Furtado encontrou um novo sentido para a vida, e um caminho até o Direito.

Aos 46 anos, o advogado previdenciarista coleciona vitórias jurídicas e emocionais que ressignificaram a trajetória marcada por pobreza extrema, exclusão e diagnóstico tardio de autismo.

Conheça a história:

Infância de luta 

Nascido na Paraíba e criado em Magé, no interior do Rio de Janeiro, Tonynho cresceu em uma família pobre, cuja renda vinha do trabalho em engenhos de cana.

Começou a trabalhar cedo na roça com o avô, plantando batata-doce e aipim, e depois foi ajudante de pedreiro e pintor.

Aos 17 anos, ingressou na Marinha, após aprovação em concurso público.

A experiência, entretanto, se tornou traumática. Após problemas psiquiátricos, foi desligado da corporação, o que o lançou no primeiro "fundo do poço"

A demissão, mais do que um revés profissional, representou um abalo emocional profundo.

Envergonhado e sem saber como contar à mãe o que havia acontecido, optou por não voltar para casa.

Durante cerca de dois meses, viveu nas ruas. Dormia em calçadas, fazia pequenos bicos em troca de uma quentinha ou de alguns trocados, e passou a fumar cigarros e a beber.

A vulnerabilidade o expôs à violência.

Certa madrugada foi agredido enquanto dormia na rua. 

"Acho que era por volta umas duas horas da manhã, uma pessoa me deu um chute na costela, me deu um chute e falou que eu era um vagabundo, que era isso, que era aquilo. [...] Então, naquele dia ali, caiu uma ficha, eu não posso mais ficar na rua, tenho que sair, porque senão vou acabar morrendo", relembra.

Foi a partir desse ponto que começou a reconstruir a vida.

Conseguiu trabalho como ajudante de pedreiro e, com o dinheiro que juntou, alugou uma pequena kitnet.

Recomeços

O reencontro de Tonynho com a dignidade começou quando um advogado o orientou a buscar a pensão a que tinha direito como cabo reformado da Marinha.

A medida ofereceu algum alívio, mas estava longe de resolver sua situação financeira. Embora o soldo de cabo fosse mais alto, ele recebia apenas uma fração do valor, já que havia contraído um empréstimo significativo para abrir seu primeiro negócio: uma loja de sorvetes.

Mudou-se para Fortaleza, alugou um pequeno espaço, uma antiga garagem, e, com os recursos do empréstimo, comprou dois freezers e uma máquina de sorvete.

Foi nesse contexto que, durante o tratamento psicológico, uma psiquiatra o incentivou a ocupar a mente e investir em educação como forma de reconstrução pessoal. A sugestão o levou a se matricular no curso de Direito da Universidade Estácio.

Tonynho chegou a considerar o curso de Psicologia, mas acabou optando pelo Direito, e sempre teve o olhar voltado ao Direito Previdenciário.

"Eu já sabia do Direito Previdenciário, então, eu pensei: 'tem tudo a ver comigo'. Direito Previdenciário, ajudar as pessoas, ajudar com aposentadorias, com BPC, crianças autistas, pessoas com deficiência. Essas pessoas que são invisíveis aos olhos da sociedade, mas eu não queria que fossem invisíveis também aos meus olhos."

Enquanto batalhava para manter o novo empreendimento e dar sequência à vida acadêmica, veio a frustração: a máquina de sorvete apresentava defeitos constantes e, segundo Tonynho, havia sido vendida em condições precárias por alguém que se aproveitou de sua ingenuidade.

Sem condições de manter a loja funcionando, viu o negócio ruir

O valor que restava da pensão, já comprometida pelas parcelas do empréstimo, mal cobria o aluguel da kitnet onde morava. 

"Mais uma vez fui para o fundo do poço", conta.

Assim, teve de vender os equipamentos e, com o que arrecadou, decidiu investir em água mineral. Começou a vender garrafinhas nas ruas de Fortaleza.

A virada, aos poucos, começou a se desenhar.

Durante o dia, trabalhava sob o sol; à noite, mantinha os estudos.

A pensão da Marinha, mesmo reduzida, ainda contribuía. 

O diagnóstico do autismo

Enquanto vendia água pelas ruas de Fortaleza, Tonynho começou a observar com mais clareza aquilo que, por muito tempo, o acompanhou sem explicação. Pequenas reações desproporcionais a estímulos do cotidiano: luzes muito fortes, sons altos, ambientes barulhentos provocavam incômodos físicos reais.

"Durante muito tempo, eu tinha as características, só que eu não entendia porque algumas coisas comigo não funcionavam bem. Luz nos olhos, que me dói, dói a cabeça. Barulho, não gosto de som muito alto. Não é que eu não goste, é que realmente dói", conta.

Foi nesse processo de autoconhecimento que veio o diagnóstico de autismo. A descoberta transformou sua relação com a própria história e fortaleceu seu engajamento social.

Vocação

Tonynho continuou a estudar, formou-se e passou na OAB. Hoje, com dois anos de atuação, e sem nenhuma causa perdida, o advogado se orgulha do trabalho que realiza.

Um dos casos mais marcantes, para ele, foi o de uma mãe de um menino autista não verbal, que recebeu o BPC (Benefício de Prestação Continuada) após meses de espera.

"Ganhamos a causa. Levei a notícia. Depois de um tempo, ela quis me dar um presente, que era uma caixa de bombom. Eu fui à casa dela, ela fez questão de me oferecer água, para abrir a geladeira. Quando abriu, tinha carne, tinha salsicha, tinha linguiça, tinha Danone, tinha maçã, tinha banana. A geladeira estava sortida e ela começou a chorar e a falar assim: 'meu filho, foi por sua causa que consegui isso'. E ela não conseguiu se conter, começou a chorar e eu também acabei chorando junto."

Devoto de Nossa Senhora de Fátima, o advogado participa ativamente da OAB/CE nas comissões de Direito Previdenciário e da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista.

Aplaude os avanços institucionais, como a emissão da CIPTEA - Carteira de Identificação da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista e as caminhadas de conscientização, mas reconhece que o preconceito existe.

"Realmente perdi muitos clientes. Inclusive já teve pessoas que colocaram em grupo: 'olha, o rapaz é autista, ele não vai conseguir ganhar a sua causa' , mas eu nunca me abalei com isso. E hoje muitas pessoas me elogiam, inclusive no próprio Instagram, falam: 'olha, você é muito profissional'."

Tonynho Furtado no processo de estudos para a OAB. Os papéis com conteúdo nas paredes ajudavam no processo de memorização.(Imagem: Acervo pessoal)

Inspiração para trajetórias atípicas

Mesmo depois dos tombos e de uma trajetória de superações e recomeços, a caminhada de Tonynho é também um manifesto de resistência para aqueles que se sentem invisíveis ou desacreditados.

O apelo que faz é direto, principalmente aos autistas e às pessoas que enfrentam sofrimento psíquico, vulnerabilidade social ou falta de oportunidades:

"Você que é uma pessoa autista, você nunca deixa alguém dizer que você não é capaz. Porque muitas pessoas falaram que eu não conseguiria passar no vestibular da faculdade, eu passei. Falaram que eu não conseguiria terminar a faculdade, terminei. Falaram que eu não conseguiria passar na prova da OAB, eu passei. Então, você tem que ter fé em você mesmo. Nunca desista dos seus sonhos."

Mais do que um testemunho de superação, Tonynho quer que a trajetória sirva de referência para outras pessoas neurodivergentes, especialmente as mais jovens, que ainda enfrentam o peso da exclusão e da invisibilidade.

E é por isso que faz palestras gratuitas nos colégios, em Fortaleza, levando temas como bullying, capacitismo e inclusão.

"Eu quero deixar esse legado para as crianças, para os adolescentes, para que eles saibam que eles podem, e hoje a gente não tem muitos adultos autistas que sirvam de referência para essas crianças. Então eu quero saber, quero ver, que algumas pessoas conseguiram se inspirar em mim, porque eu não tive pessoas com as quais eu pudesse me inspirar."

O advogado também deixa uma mensagem de resiliência: no fundo do poço podem ser encontradas as pedras para construir degraus.

"Quando eu fui parar no fundo do poço, eu não sabia que aquilo ali eram pedras que estavam sendo colocadas no meu caminho para formar um degrau, para que eu fosse a pessoa que eu sou hoje. Eu agradeço muito a Deus. Se eu pudesse mudar alguma coisa na minha história, eu não mudaria nada."

Fonte: https://www.migalhas.com.br/quentes/436420/advogado-autista-vendeu-agua-para-concluir-curso-e-hoje-atua-na-causa

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