A inversão da multa contratual e a cumulação da multa moratória com lucros cessantes nas vendas de imóveis

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bit.ly/3hiv36S | Em maio de 2019, o Superior Tribunal de Justiça firmou as seguintes teses, no âmbito de julgamento de recursos repetitivos (art. 1.036, CPC), que passaram a ser de observância obrigatória por juízes e tribunais, conforme o art. 927, III, CPC:

No contrato de adesão firmado entre o comprador e a construtora/incorporadora, havendo previsão de cláusula penal apenas para o inadimplemento do adquirente, deverá ela ser considerada para a fixação da indenização pelo inadimplemento do vendedor. As obrigações heterogêneas (obrigações de fazer e de dar) serão convertidas em dinheiro, por arbitramento judicial[1].

A cláusula penal moratória tem a finalidade de indenizar pelo adimplemento tardio da obrigação, e, em regra, estabelecida em valor equivalente ao locativo, afasta-se sua cumulação com lucros cessantes[2].

As teses em foco tratam, respectivamente, da denominada inversão da cláusula penal em desfavor da construtora/incorporadora e da incumulabilidade da cláusula penal moratória com indenização de lucros cessantes.

Para analisarmos adequadamente os precedentes em questão, convém resgatar rapidamente o conceito, modalidades e finalidades da cláusula penal.

A cláusula penal é o pacto acessório, normalmente integrado a um contrato (pacto principal), no qual as partes estipulam uma obrigação (quase sempre de pagar certa quantia) a ser suportada por aquele que venha a atrasar o cumprimento de uma ou mais obrigações (cláusula penal moratória), ou que venha a descumpri-la de forma absoluta (cláusula penal compensatória). Trata-se, pois, de obrigação acessória e condicional, cujo valor não pode ultrapassar o da obrigação principal (art. 412, CC), e que prescinde da existência de efetivo prejuízo para que seja exigível (art. 416, CC).

A doutrina identifica dupla finalidade na cláusula penal. Uma delas seria a de reforçar o vínculo obrigacional, “ampliando as possibilidades de cumprimento da obrigação”, uma vez que “o devedor, sabendo que se sujeitará a um maior valor no pagamento, envidará melhores esforços para cumprir sua obrigação”[3]. Ademais, a cláusula penal enseja a liquidação antecipada das perdas e danos resultantes do inadimplemento, proporcionando às partes maior segurança jurídica quanto às repercussões do descumprimento da obrigação, bem como a economia do tempo, esforços e recursos que seriam necessários para a apuração dos prejuízos por ele acarretados.

Entretanto, a cláusula penal compensatória – aplicável quando não haja mais possibilidade de cumprimento da obrigação - somente cumprirá essa segunda finalidade (de liquidação prévia da indenização) se assim desejar o credor, pois, como se extrai do artigo 410 do Código Civil, cabe ao credor decidir se ficará com a segurança e praticidade da cláusula penal ou se buscará a efetiva apuração e indenização de suas perdas e danos. A possibilidade de se valer da cláusula penal (como mínimo indenizatório) e ainda buscar indenização suplementar dos prejuízos depende de previsão expressa no pacto (art. 416, par. ún., CC).

Tratando especificamente da inversão da cláusula penal, ela já vinha há muito sendo admitida na jurisprudência do STJ, mesmo em relações contratuais não regidas pelo Código de Defesa do Consumidor, como ocorreu no julgamento do REsp 1119740/RJ, em que se decidiu que “a cláusula penal inserta em contratos bilaterais, onerosos e comutativos deve voltar-se aos contratantes indistintamente, ainda que redigida apenas em favor de uma das partes”[4].

Em certos contextos, tal inversão realmente nos parece uma técnica legítima de adequação do contrato à sua função social, da qual se pode extrair o princípio da equivalência material, que, segundo Paulo Lôbo, tem como escopo “realizar e preservar o equilíbrio real de direitos e deveres no contrato, antes, durante e após sua execução, para rearmonização dos interesses”[5]. O doutrinador explica que a equivalência material vai além da equivalência comutativa, sendo “objetivamente aferida quando o contrato, seja na sua constituição, seja na sua execução, realiza a equivalência das prestações, sem vantagens ou onerosidades excessivas originárias ou supervenientes para uma das partes”[6].

Paulo Lôbo também elenca três pressupostos de aplicação desse princípio: a) a existência de desproporção manifesta entre os direitos e deveres de cada parte; b) a desigualdade de poderes negociais, o que exclui sua incidência nos contratos paritários; e c) o reconhecimento da situação de vulnerabilidade de um dos contratantes pelo direito[7].

Note-se que o princípio da equivalência material e seus três pressupostos de aplicação compatibilizam-se perfeitamente com a norma do artigo 424, que expõe à invalidade as cláusulas de contratos de adesão que “estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio” (art. 424). O contrato de adesão – redigido por apenas uma das partes, sem margem para negociação de suas cláusulas - já denuncia, de per si, a desigualdade de poderes negociais entre as partes, o que levou o legislador a reconhecer a vulnerabilidade do aderente, no próprio artigo 424 e também no artigo 423 do Código Civil. Bem por isso, a renúncia a direito resultante da natureza do negócio, que gera manifesta desproporção entre os direitos e deveres dos contratantes, não é admissível em contratos de adesão, à luz do princípio da equivalência material.

Sem embargo, a inversão judicial da cláusula penal, sob as vestes da equivalência material, mas sem a devida consideração das peculiaridades do caso concreto, ensejaram a eclosão de decisões teratológicas, que ao invés de reequilibrar os contratos, deram lugar a multas desarrazoadas, em descompasso com o disposto no artigo 413 do Código Civil.

Em atenção ao problema gerado por tais decisões, o Min. Luis Felipe Salomão, ao proferir o voto-condutor do julgamento do REsp 1631485 / DF (no âmbito do qual foi fixada a tese sobre a inversão da cláusula penal), propôs a seguinte solução:

[...] nos casos de obrigações de natureza heterogênea (por exemplo, obrigação de fazer e obrigação de dar), impõe-se sua conversão em dinheiro, apurando-se valor adequado e razoável para arbitramento da indenização pelo período de mora, vedada sua cumulação com lucros cessantes. Feita essa redução, geralmente obtida por meio de arbitramento, é que, então, seria possível a aplicação/utilização como parâmetro objetivo, para manutenção do equilíbrio da avença, em desfavor daquele que redigiu a cláusula [...] evidentemente, a multa compensatória estabelecida por mora referente à obrigação de pagar (de dar), no caso, não poderá, por questão de simetria, incidir sobre todo o preço do imóvel que deveria ter sido entregue (obrigação de fazer), como, aliás, reconhece o autor, ora recorrente, na inicial. Assim, dou parcial provimento ao recurso especial para julgar integralmente procedente o pedido formulado na inicial, reconhecendo o direito do autor, ora recorrente, a ser indenizado pelo inadimplemento contratual, tomando-se como parâmetro a cláusula penal compensatória estabelecida apenas em benefício da incorporadora, mediante liquidação por arbitramento. [...][8]

Com todo respeito, temos de discordar da solução proposta pelo Min. Salomão (que lamentavelmente foi aceita e positivada no enunciado convertido em precedente obrigatório), qual seja, a conversão da obrigação de fazer da incorporadora em dinheiro, através de arbitramento judicial, e a aplicação da alíquota da clausula penal compensatória sobre o valor obtido.

Em primeiro lugar, é importante deixar claro que se está tratando da inversão de cláusula penal compensatória, originalmente estipulada apenas em favor da incorporadora, em contrato de adesão que foi rescindido pelo atraso na entrega do imóvel, que não chegou a ocorrer (inadimplemento absoluto, portanto).

Como dito acima, pensamos que, nos contratos de adesão (seja a relação de consumo, civil ou empresarial), incide o princípio da equivalência material, que impõe a intervenção judicial para garantir o tratamento igualitário às partes, em sua dimensão substancial (e não meramente formal).

Todavia, para que a equivalência material conduza a um tratamento formalmente desigual entre os contratantes, é preciso que haja um motivo razoável, que não nos parece existir em casos como o que originou o precedente em foco, eis que o contrato de compra e venda de imóvel (ou promessa de venda) é comutativo, isto é, “as prestações de ambas as partes são de antemão conhecidas, e guardam entre si uma relativa equivalência de valores[9].

Ora, se a cláusula penal fixada originalmente no contrato de compra e venda (que é comutativo) prevê certa multa (em percentual) contra o comprador, pelo descumprimento de qualquer obrigação que ensejasse a resolução do contrato, incidindo ela sobre o valor total do contrato, não há qualquer motivo para que essa mesma multa – ardilosamente prevista apenas em favor da incorporadora – não seja simplesmente invertida, em prol do comprador, incidindo também sobre o valor integral do contrato, conforme vinha admitindo o próprio STJ, antes da fixação do precedente obrigatório em tela[10]. Esse entendimento está presente, também na obra dos Profs. Cristiano Farias e Nelson Rosenvald[11].

Mesmo considerando que o escopo da cláusula penal (apesar do nome) não é punitivo, mas sim compensatório; e que é diversa a natureza das prestações devidas pelo vendedor/construtor e pelo comprador de imóvel; não vemos motivos para que, num contrato comutativo, haja uma compensação maior para um dos contratantes do que para o outro, em caso de resolução por inadimplemento. Tais compensações, a princípio, devem ser iguais, já que o valor das prestações é aproximado, o que não impede que o beneficiário abra mão da cláusula penal e busque a efetiva apuração e indenização de todos os seus prejuízos, consoante o artigo 410 do Código Civil. Ademais, se a cláusula penal em questão tiver valor desarrazoado, não deverá ser invertida, mas sim anulada, apurando-se a indenização razoável, consoante o artigo 413 do Código Civil.

Como não bastasse, a imposição de arbitramento do valor da obrigação para a inversão da cláusula penal esvazia a sua maior conveniência, que é justamente a pré-liquidação das perdas e danos[12]. Reavivada a possibilidade de discussão do quantum debeatur – que só é autorizada na lei sob o argumento de clara desproporção do valor previsto em contrato (art. 413 do CC)- a cláusula penal perde muito de sua funcionalidade, tornando-se mais interessante, em muitos casos, o pleito indenizatório.

Nesse sentido, concordamos parcialmente com o argumento utilizado pela Min. Maria Isabel Gallotti, no voto vencido apresentado no mesmo julgamento, no que tange à afirmação de que a solução preconizada pelo Min. Salomão “na prática, significaria a criação, pelo Judiciário, de cláusula nova, cujos parâmetros (e não apenas a respectiva quantificação) seriam decididos caso a caso, após surgido o litígio, aniquilando, data maxima venia, a razão de ser o instituto de direito civil ‘cláusula penal', voltado precisamente a predeterminar o valor compensatório do inadimplemento da obrigação principal ao qual é acessória”.

Todavia, com o devido acatamento e pelos motivos já expostos, discordamos completamente da conclusão da Ministra, para quem "não é possível a inversão da cláusula penal estabelecida em desfavor do adquirente para o pagamento das prestações com sua aplicação ao descumprimento pela construtora no prazo de entrega de imóvel em construção prometido à venda".

No concernente à outra tese firmada, sobre a impossibilidade de se cumular a cláusula penal moratória com indenização pelos lucros cessantes resultantes da impossibilidade de fruir do imóvel, só temos a elogiar a correção do terrível equívoco de se permitir tal cumulação, há muito presente na jurisprudência do STJ.

É relevante frisar que o erro corrigido com a aprovação da referida tese vinculante vinha de longa data. Ainda 2009, a Quarta Turma decidiu que “a instituição de cláusula penal moratória não compensa o inadimplemento, pois se traduz em punição ao devedor que, a despeito de sua incidência, se vê obrigado ao pagamento de indenização relativa aos prejuízos dele decorrentes[13]. Desde então, foram muitas as decisões no mesmo sentido, como a que foi proferida em 2017 pela Terceira Turma, na qual se declarou: “é possível cumular a cláusula penal decorrente da mora com indenização por lucros cessantes quando há atraso na entrega do imóvel pela construtora”[14].

Com efeito, a condenação da construtora em multa moratória associada a indenização por lucros cessantes representava claríssimo bis in idem, posto que, mesmo a cláusula penal moratória tem caráter eminentemente ressarcitório, como amplamente reconhecido pela doutrina[15]. Embora não substitua a obrigação principal (como faz a cláusula penal compensatória), a multa moratória indubitavelmente se presta a ressarcir as perdas resultantes da mora (funcionando como liquidação prévia dos danos que ela pode produzir). Portanto, admitir a cobrança simultânea da multa e dos lucros cessantes, como vinha fazendo o STJ, conduzia a duplo ressarcimento pelos mesmos danos, gerando o enriquecimento sem causa dos compradores.

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[1] REsp 1631485/DF, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 22/05/2019, DJe 25/06/2019

[2] REsp 1635428/SC, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 22/05/2019, DJe 25/06/2019

[3] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: obrigações e responsabilidade civil. 18ed. São Paulo: Atlas, 2018. p. 345

[4] REsp 1119740/RJ, Rel. Ministro MASSAMI UYEDA, TERCEIRA TURMA, julgado em 27/09/2011, DJe 13/10/2011. Em igual sentido AgInt no REsp 1605201/DF, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 27/02/2018, DJe 08/03/2018. Especificamente para contratos de consumo, veja-se EDcl no AgInt no AREsp 925.424/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 21/02/2017, DJe 07/03/2017

[5] LÔBO, Paulo. Direito civil: contratos. 4ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. v3. p. 51

[6] Idem. Ibidem.

[7] Idem. p. 52

[8] REsp 1631485/DF, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 22/05/2019, DJe 25/06/2019

[9] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 18ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. v3. p. 180

[10] Vide nota de rodapé nº 4.

[11] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: obrigações. 11ed. Salvador: JusPodivm, 2017. v2. p. 635

[12] Cf. MONTEIRO, Washington de Barros; MALUF, Carlos Alberto Dabus. Direito das obrigações. 40 ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 434

[13] REsp 968.091/DF, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, QUARTA TURMA, julgado em 19/03/2009, DJe 30/03/2009

[14] REsp 1642314/SE, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 16/03/2017, DJe 22/03/2017

[15] Cf. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. op. cit. p. 629
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Yago de Carvalho Vasconcelos
Advogado
Bacharel em Direito pelo Instituto Camillo Filho, Teresina-PI. Pós-graduado em Direito Processual Civil pela LFG, e em advocacia Imobiliária, Urbanística, Registral e Notarial pela UNISC.
Fonte: yago1992.jusbrasil.com.br

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