Celular apreendido por ocasião de flagrante delito pode ser acessado sem prévia decisão judicial?

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No seu artigo inaugural, a Constituição da República enuncia valores fundamentais em torno dos quais formamos uma nação, dentre eles, o primado do respeito à dignidade da pessoa humana (art. 1°, inciso III, da CF).

Como corolário desse generoso postulado, decorre que valores intrínsecos à dignidade humana recebem a tutela constitucional, seja orientando o legislador no momento da produção de atos normativos, seja orientando os agentes públicos quanto à prática de atos inerentes ao seu ofício, isso na esfera de qualquer dos Poderes públicos, inclusive no que diz com a atividade jurisdicional.

E é nessa linha, que a Constituição Federal, no art. 5º, incisos X e XII, assegura, como cláusulas de direito fundamental, respectivamente, a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, e a inviolabilidade de dados e das comunicações telefônicas, salvo mediante autorização judicial, consagrando a chamada reserva jurisdicional.

Dito de outro modo, somente se admite o afastamento do sigilo garantido pela Lei Maior mediante expressa e fundamentada decisão judicial, sob pena de caracterização de ilicitude dos elementos colhidos por meio de indevida devassa em telefones celulares.

Outrossim, no plano infraconstitucional, a Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), também consagra ser direito do cidadão usuário da internet o direito ao sigilo de suas comunicações pela internet e de suas comunicações privadas armazenadas, o qual somente poderá ser arredado por prévia e fundamentada decisão judicial.

Veja-se o que dispõe o art. 7º, incisos I, II e III, da Lei nº 12.965/2014:

"Art. 7º O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos:

I – inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

II – inviolabilidade e sigilo do fluxo de suas comunicações pela internet, salvo por ordem judicial, na forma da lei;

III – inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial.

Ainda, a Lei nº 9.472/97, ao tratar da organização dos serviços de telecomunicações, estabelece, no art. 3°, inciso V: “O usuário de serviços de telecomunicações tem direito à inviolabilidade e ao segredo de sua comunicação, salvo nas hipóteses e condições constitucional e legalmente previstas.”

E o fato de o celular ter sido apreendido por ocasião de uma prisão em flagrante delito não tem o condão de afastar a tutela constitucional e legal da intimidade e da privacidade de seu usuário. É dizer, continua sendo indeclinável a necessidade de afastamento do sigilo somente mediante prévia e fundamentada decisão de autoridade judiciária competente, sob pena de ilicitude da obtenção indevida de dados e informações armazenados no aparelho.

Nessa linha, o Superior Tribunal de Justiça tem afiançado o entendimento de ser indispensável a prévia autorização judicial para que a polícia possa vasculhar conteúdo de aparelho celular, ainda que este tenha sido apreendido em situação de flagrante delito: “Esta Corte Superior tem entendimento de que ilícita é a devassa de dados, bem como das conversas de whatsapp, obtidas diretamente

pela polícia em celular apreendido por ocasião da prisão em

flagrante, sem prévia autorização judicial.” (STJ, 6ª Turma, HC 628884/GO, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 02/03/2021)

E o Supremo Tribunal Federal, por sua vez, tem consolidado entendimento no sentido de que o acesso a aparelho celular, por policiais, desprovido de autorização judicial, conduz à ilicitude das provas obtidas e das delas derivadas. Observe-se:

  1. Habeas corpus. 2. Acesso a aparelho celular por policiais sem autorização judicial. Verificação de conversas em aplicativo WhatsApp. Sigilo das comunicações e da proteção de dados. Direito fundamental à intimidade e à vida privada. Superação da jurisprudência firmada no HC 91.867/PA. Relevante modificação das circunstâncias fáticas e jurídicas. Mutação constitucional. Necessidade de autorização judicial. 3. Violação ao domicílio do réu após apreensão ilegal do celular. 4. Alegação de fornecimento voluntário do acesso ao aparelho telefônico. 5. Necessidade de se estabelecer garantias para a efetivação do direito à não autoincriminação. 6. Ordem concedida para declarar a ilicitude das provas ilícitas e de todas dela derivadas. (STF, 2ª Turma, HC 168.052/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 19/10/2020) (grifou-se)

Na mesma linha, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul tem decidido que: “Seguindo entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça, o acesso aos dados telefônicos por policiais, sem prévia autorização judicial, constitui violação à intimidade, razão pela qual é acolhida a preliminar suscitada e determinado o desentranhamento das referidas provas e das provenientes destas” (Tribunal de Justiça/RS, 3ª Câmara Criminal, Apelação-crime n° 70076137785, Rel. Des. Ingo Wolfgang Sarlet, julgada em 22/08/2018).

A regra é o sigilo. O afastamento constitui a exceção. Destarte, a exceção somente poderá advir de prévia e fundamentada decisão judicial.

Vale enfatizar que a decisão judicial autorizatória da quebra de sigilo de aparelho telefônico apreendido deve ser prévia à devassa policial, não se podendo admitir prática assaz verificada no cotidiano forense, qual seja, a polícia apreende celular, realiza o exame de seu conteúdo e, depois, postula ao Poder Judiciário a quebra de sigilo, para coonestar a ilegalidade já praticada.

Não custa recordar que a Constituição Federal, no seu art. 5°, inciso LVI, proscreve a admissão, em âmbito processual, de provas ilicitamente obtidas e, inclusive daquelas que tenham derivação do material probatório ilicitamente amealhado, o que assume especial relevo em sede processual penal, tendo em vista a disposição do art. 157, caput, e § 1°, do Código de Processo Penal (são inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais).

Sempre oportuno rememorar antiga lição fornecida por um dos mais respeitados juízes que já teve o Supremo Tribunal Federal, o Ministro Marco Aurélio:

"Justiça não é sinônimo de justiçamento. A sociedade não convive com o atropelo a normas reinantes. O desejável e buscado avanço social pressupõe o respeito irrestrito ao arcabouço normativo. É esse o preço a ser pago – e é módico, estando ao alcance de todos – por viver-se em um Estado Democrático de Direito.

Rodrigo De Oliveira Vieira
Fonte: Canal Ciências Criminais

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