Por que juízes e advogados relutam em aplicar o artigo 926 do CPC?

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Por @lenio_streck 1. A busca da efetividade do artigo 926 do CPC

Fiz a conferência de abertura do 24º Conat (Conferência Nacional da Advocacia Trabalhista). Um dos temas que abordei foi a falta da aplicação do artigo 926 do CPC na Justiça do Trabalho, mesma circunstância que encontramos nos demais ramos. Na verdade, nem no processo civil o dispositivo parece ter alcançado a efetividade devida. Na conferência, sustentei a necessidade da aplicação do dispositivo a todos os ramos do direito.

Diz o art. 926 do Código de Processo Civil:

"Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.

§ 1.º Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante.

2.º Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação."

2. Para além da mera estabilidade jurisprudencial

Registro que, no processo de elaboração do Código de Processo Civil de 2015, o projeto original vindo do Senado exigia apenas que a jurisprudência guardasse "estabilidade".

Conheço bem o dispositivo. Por iniciativa minha, o relator, deputado Paulo Teixeira, incluiu a exigência de coerência e integridade.

Trata-se da explicitação de algo que já estava contemplado no plano da principiologia constitucional, conforme deixo claro há muito.[1]

Em vários textos, elenco os cinco princípios-padrões que devem sempre ser obedecidos em cada decisão judicial, entre eles, os princípios da coerência e da integridade, tese retirada de Dworkin e, em certa medida, de MacCormick.

3. Conceituando coerência e integridade

Assim, haverá coerência se os mesmos preceitos e princípios que foram aplicados nas decisões o forem para os casos idênticos; mais do que isto, estará assegurada a integridade do direito a partir da força normativa da Constituição.

Coerência e integridade são elementos da igualdade. No caso específico da decisão judicial, isso significa: os diversos casos terão a igual consideração. Analiticamente:

i) Coerência liga-se à consistência lógica que o julgamento de casos semelhantes deve guardar entre si. Trata-se de um ajuste que as circunstâncias fáticas do caso deve guardar com os elementos normativos que o Direito impõe ao seu desdobramento;

ii) Integridade exige que os juízes construam seus argumentos de forma integrada ao conjunto do Direito, numa perspectiva de ajuste de substância. De algum modo, a integridade refere-se a um freio ao estabelecimento de dois pesos e duas medidas nas decisões judiciais, constituindo-se em uma garantia contra arbitrariedades interpretativas, vale dizer, coloca efetivos freios às atitudes solipsistas-voluntaristas.

A igualdade política exige que coerência e integridade sejam faces da mesma moeda. Ademais, a integridade é antitética ao livre convencimento (expungido do CPC). A ideia nuclear da coerência e da integridade é a concretização da igualdade.

A melhor interpretação do valor igualdade deverá levar em conta a convivência com um valor igualmente relevante e que deve ser expressado em sua melhor interpretação: a liberdade.

4. A liberdade de matar o cordeiro

Por isso, o lobo não pode ter “liberdade” de matar o cordeiro; eu não tenho “liberdade” para matar alguém. A liberdade funciona como um conceito interpretativo. Um conceito cuja concepção adequada, correta, para que seja correta, deve estar em equilíbrio — coerentemente, portanto — com as demais concepções de nossos conceitos políticos. A liberdade e a igualdade e o bem comum e os direitos individuais não estão em conflito. A ideia de sacrificar liberdade ou igualdade, uma em nome da outra, é um equívoco: só existe quando nossas interpretações não são íntegras.

Na construção do meu direito à liberdade, a igualdade já está envolvida e vice-versa. A integridade, no plano jurídico, também significa: fazer da aplicação do direito um “jogo limpo” (fairness – que quer dizer: tratar a todos os casos equanimemente).

Exigir coerência e integridade quer dizer que o aplicador não pode dar um drible hermenêutico na causa ou no recurso, do tipo “seguindo minha consciência, decido de outro modo”. Exigir coerência e integridade significa dizer que o cidadão tem um direito fundamental a uma resposta adequada ao todo coerente do Direito, e não simplesmente um acesso à opinião particular deste ou daquele juiz.

5. A otimização da leitura do artigo 926

Uma melhor leitura do art. 926 indica que o julgador não pode tirar da manga do colete um argumento que seja incoerente com aquilo que antes se decidiu, a não ser, é claro, que reconheça que os argumentos que construíram suas decisões anteriores estavam errados – ou simplesmente que, hoje, não fazem mais sentido. Coerência com o todo do ordenamento, com o caso concreto específico, com os princípios que sustentam um sistema jurídico ancorado num paradigma constitucional pós-88. É difícil, hercúleo. Mas não é difícil nem hercúleo. Porque, com coerência e integridade, aprendemos que um caso difícil é só um caso fácil que ainda não foi compreendido.

Pedir responsabilidade política é pedir demais?

Não há — e não pode haver — compromisso com o erro. Arrependimentos institucionais fazem parte do jogo, conforme interessantes exemplos que Dworkin mostra no livro Império do Direito.

Quer dizer: coerência e integridade são padrões que se combinam. Não há relação de oposição ou conflito, mas de complementaridade. Outro exemplo, concreto, vem da ADI 2.591, em que o STF decidiu, corretamente, que o Código do Consumidor se aplicará às instituições financeiras, acabando com significativa divergência jurisprudencial. Até seria coerente continuar a decidir pela não aplicação do CDC aos contratos bancários. Ou seja, pode-se ser “coerente no erro”. Mas não haveria integridade.

6. Um antídoto contra decisões “por que sim” e “por que não”

Agregue-se outro elemento importante decorrente da — necessária — aplicação do art. 926: parece evidente que o julgador não pode quebrar a cadeia discursiva “porque quer” (ou “porque sim”).

Nessa linha, a aplicação coerente e íntegra do direito deveria acarretar a diminuição do número de Embargos de Declaração, alterando também a sua fundamentação.

No campo prático, é possível retirar inúmeros benefícios do artigo 926, em todos os ramos do direito. Por vezes os advogados não se dão conta do ouro que está aos seus pés. Como já referi, nos Comentários ao artigo 926, faço longo arrazoado. Talvez o artigo 926 seja o dispositivo mais importante do direito brasileiro.

Além do mais, é possível potencializar o uso da coerência e da integridade pela garantia da não surpresa, outro importante dispositivo do CPC. Com isso é possível estabelecer um controle público do perigoso poder cautelar do juiz. A coerência e a integridade são, assim, os vetores principiológicos não somente do CPC, como também dos demais ramos do direito.

Em qualquer decisão judicial — de todos os ramos do direito —  a fundamentação – incluindo as medidas cautelares e as tutelas antecipadas – deve respeitar a coerência e a integridade. Do primeiro grau à mais alta Corte do país.

7. A umbilical relação entre a fundamentação como dever e a coerência e a integridade

Isso porque o Poder Público deve ter uma só voz. Trazer a integridade e a coerência para o âmago do processo não é “perfumaria”. Devemos levar o texto jurídico a sério. Limites semânticos são importantes.

Toda decisão em que se constata que não foi obedecida a coerência e a integridade (a estabilidade é decorrência lógica) é recorrível. Ou seja, uma decisão incoerente e/ou não íntegra será errada, portanto, digna de reforma.

O julgador que profere uma decisão incoerente ou afastada da integridade comete um equívoco. Uma decisão que contém um fundamento jurídico errado não é, por si só, nula; ela é reprovável e desafia revisão, correção, conforme o Direito.

Aqui, um adendo importante: o Direito tem e deve ter seu grau de autonomia, inclusive epistemológico. O ponto é que a exigência de coerência e integridade está, hoje, sacralizada no direito positivo. Isso é fato. Artigo 926. O direito como integridade venceu. Você pode ter a concepção de Direito que for, mas a exigência de coerência e integridade é legislativa, está no Direito democraticamente aprovado no Parlamento.

Não respeitar a coerência e a integridade do Direito, hoje, no Brasil, significa descumprir a lei. Estamos de acordo com isso?

Numa democracia, cumprir a lei não é feio. Cumprir a letra da lei não é “ser positivista”. Mais ainda aqui, com nosso inovador e tão desrespeitado 926. No Brasil, cumprir a letra da lei por vezes é respeitar o direito em sua integridade.

Por uma questão de princípio.
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[1] (Por todos, Streck, L.L. Verdade e Consenso. São Paulo: Saraiva, 2014 e outros textos, como o Dicionário de Hermenêutica, ed. Casa do Direito)
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Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional, pós-doutor em Direito e sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados.
Fonte: Conjur

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