O caso da boate Kiss, a decisão do Ministro Fux e o “Prendus Corpus”

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Via @canalcienciascriminais | Em 13 de dezembro de 1968 fora editado o Ato Institucional nº. 5, estampando diversas aberrações jurídicas, destacando-se dentre as hipóteses do regime de exceção que consolidou os anos de chumbo da ditadura militar, a supressão do habeas corpus, afirmando o art. 10 do AI-5 que:

fica suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular.

Referida anomalia deu ensejo ao recrudecimento das prisões políticas, aumento das torturas nos porões dos quartéis, dificultando a apuração e punição dos abusos praticados. Buscava-se com a extinção do habeas corpus legitimar o arbítrio.

Em 1977 a OAB, conduzida pelo inigualável presidente Raymundo Faoro, passa a encabeçar movimento da sociedade civil buscando a restauração da legalidade, apresentando uma pauta com diversas reivindicações, destacando-se a revogação do AI-5. Em célebre reunião com o presidente Ernesto Geisel para tratar do tema, o bâtonnier da advocacia brasileira abre sua manifestação fazendo um apelo:

Presidente, devolva o habeas corpus”.

(“O habeas corpus não é só uma relação da sociedade civil, mas uma necessidade do próprio governo, pois a boa autoridade só pode vigiar a má autoridade pelo controle das prisões, proporcionado pelo habeas corpus”. GASPARI, Elio. A ditadura encurralada. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 450.)

O general Geisel atende o pleito, o AI-5 é revogado e o habeas corpus é restaurado, passando a não sofrer qualquer peia, podendo atacar todo tipo de prisão ou arbitrariedade. E assim continuou com o advento da Constituição Cidadã, sendo alçado à condição de garantia fundamental (art. 5º, LXVIII da Lex Mater) afirmando a Carta Política de 1988 que sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder, conceder-se-á habeas corpus.

Eis direito sagrado, intimamente ligado a proteção da liberdade individual, à contenção do arbítrio, à limitação do abuso de autoridade, impedindo a decretação ou manutenção de prisões excessivas e desnecessárias.

Destaque-se que mesmo diante de ação constitucional de importância evidente, cuidando-se de instituto que tem suas origens na Magna Carta do Rei João-sem-Terra de 1215, não são raros os movimentos jurisprudenciais (“Em julgamentos não é incomum a mesma grita. Eloquente, a propósito, o voto do Ministro Gilson Dipp no HC nº. 128.590, quando aproveitou o ensejo para praguejar o uso excessivo do habeas corpus ‘por uma irrefletida banalização e vulgarização’, além da ‘desmoralização’ das instâncias ordinárias de processo e julgamento”. TORON, Alberto Zacharias. Habeas Corpus. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 33) e legislativos (tanto o projeto de Novo Código de Processo Penal como as famigeradas “Dez medidas contra corrupção” traziam em suas redações originárias restrições ao uso do habeas corpus) que buscam emascular o habeas corpus.

O último golpe sofrido pelo habeas corpus partiu justamente de quem deveria defendê-lo: o Presidente da nossa Suprema Corte.

Após o término do julgamento pelo Tribunal do Júri do trágico caso da “Boate Kiss”, votando o conselho de sentença pela condenação dos 04 (quatro) réus, entendendo que houve a prática, com dolo eventual e em concurso formal, de homicídios (242 mortes) e tentativas de homicídios (mais de 600 feridos), fora proferida a sentença fixando-se em desfavor dos acusados as penas que variam de 18 anos a 22 anos e seis meses. Optou o magistrado que presidiu a sessão do júri pela incidência, de forma automática, do controverso art. 492, I, “e”, do Código de Processo Penal, inserido pelo pacote anticrime (Lei nº. 13.964/19), determinando a execução provisória da pena.

Um dos réus teve habeas corpus preventivo impetrado em seu favor, sendo expedindo salvo-conduto pela 1ª Câmara Criminal do TJRS, impossibilitando a prisão automática (execução provisória da pena igual ou superior a 15 anos). A decisão fora acertadamente estendida aos demais acusados. As prisões dos réus foram decretadas na sentença e deixaram de ser cumpridas, em razão da concessão de liminar pela instância superior.

Irresignado com referida decisão o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul ajuíza perante o Supremo Tribunal Federal uma Suspensão de Liminar (SL nº 1.504/RS), sendo deferida medida cautelar pelo Ministro Presidente do STF, com suposto amparo no art. 4º, §7º, da Lei nº. 8.437/92, suspendendo os efeitos da decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Ao utilizar uma lei voltada para regulamentar as hipóteses que protegem e tutelam a Fazenda Pública em juízo, notadamente diante da concessão de liminares em “caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas”, buscando manietar o habeas corpus, o Exmo. Presidente do STF passa a conceber um novo instituto: cuida-se do prendus corpus ou habeas corpus às avessas (valendo-se do latim clássico, talvez o mais adequado seja denominar esse novo instituto concebido pelo Presidente do STF como prehendere (pegar, segurar, capturar) corpus).

A Lei nº. 8.437, de 30 de junho de 1992, que dispõe sobre a concessão de medidas cautelares contra atos do Poder Público, à toda evidência, não se aplica no caso de concessão de habeas corpus. Diante da inexistência de efeito suspensivo nos recursos do Ministério Público, dever-se-ia aguardar o julgamento do mérito do Writ pelo TJRS e acaso inconformado com a decisão local, poderia o Parquet gaúcho interpor Recurso Especial e/ou Recurso Extraordinário, mas jamais dar um “drible da vaca hermenêutico”, como nos alerta o Prof. Lênio Streck.

Merece registro que a expedita decisão que concede medida cautelar em Suspensão de Liminar (prendus corpus) determinando a imediata prisão dos réus para iniciar a execução provisória das penas deu-se em menos de 24 (vinte e quatro) horas após a impetração do “recurso” pelo MPRS, sendo cumprido o ergástulo com amparo na “altíssima reprovabilidade social das condutas dos réus, a dimensão e a extensão dos fatos criminosos, bem como seus impactos para as comunidades local, nacional e internacional, a decisão impugnada do Tribunal de Justiça do Rio Grande Sul causa grave lesão à ordem pública ao desconsiderar, sem qualquer justificativa idônea os precedentes do Supremo Tribunal Federal e a dicção legal explícita do artigo 492, §4º, Código de Processo Penal”.

Digno de nota que mesmo após referida decisão cautelar do Ministro Fux, a Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul no último dia 17.12.21 julgou o mérito do habeas corpus, concedendo unanimemente a ordem, não reconhecendo o efeito automático da execução provisória da pena nas condenações do tribunal do júri, devendo-se respeitar a garantia constitucional da presunção de inocência agasalhada no art. 5º, LVII da Constituição Federal.

Novamente de forma intimorata fora apresentado pedido incidental pelo MPRS e, de maneira extremamente célere, o Presidente do STF susta os efeitos de eventual concessão de habeas corpus do TJRS. Em outras palavras disse: quem decide é o STF (por seu presidente) e com o presente caso (inédito e inusitado) está instituído o prendus (prehendere) corpus, valendo-se de uma lei cível de proteção à Fazenda Pública para sacrificar a liberdade no altar das circunstâncias.

Os réus interpuseram Agravo Regimental, restando agora, apenas e tão somente, aguardar o julgamento colegiado de referidos recursos. Espero que sejam pautados com a mesma presteza e rapidez com que foram concedidas as liminares, não havendo retardo indevido como no julgamento do auxílio moradia para magistrados ou da implementação do juiz das garantias, rapidamente apreciados em sede liminar e com injustificável demora para julgar o mérito de forma colegiada e transparente.

Resta a defesa, quando do julgamento dos agravos regimentais, dirigir-se ao Min. Fux e evocando Raymundo Faoro, repetir o pleito feito ao general Geisel nos estertores da ditadura: “Presidente, devolva o habeas corpus”.

Vivemos tempos estranhos e a luta é cada vez mais necessária, pois nem mesmo uma garantia concebida em 1215, voltada para a defesa da liberdade de locomoção e combate ao arbítrio, tem sua sacralidade respeitada.
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Evânio Moura
Doutor em Direito Penal e Mestre em Processo Penal pela PUC-SP. Professor de Direito Penal da Faculdade de Direito 08 de Julho. Advogado. Procurador do Estado de Sergipe.
Fonte: Canal Ciências Criminais

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