Juiz escreve sentença de usucapião de casarão em forma de poema

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Via @tribunademinas | Em uma cidade com pouco mais de 6 mil habitantes, o inusitado é certo. Há quase 130 anos, o Fórum Wilson Alvim Amaral, na cidade de Palma, ocupa o mesmo prédio histórico na Praça Getúlio Vargas. A cidade, recentemente, foi contemplada com um projeto de modernização, que incluía alterações nesse casarão. No início dos trâmites para a obra, por acaso, descobriu-se que o prédio não tinha documentação com registro. Para ocupar legalmente o espaço, foi iniciado um processo de usucapião. A sentença poderia ser como aquelas outras que vimos por aí, em “juridiquês”, com palavras difíceis. Essa, no entanto, assinada por Antônio Augusto Pavel Toledo, juiz da Comarca de Palma, foi toda escrita em versos rimados: a poesia do direito.

O juiz explica que recebeu o processo em meio a tantos outros na época do recesso. O gerente de secretaria, Sanderson Luiz de Paula Nogueira, havia pedido um olhar sensível ao processo, uma vez que o prédio do Poder Judiciário acompanhou a história da cidade. Toledo decidiu, então, que esse seria o primeiro caso que olharia no ano. Como gosta de poesia, e já inserira versos de poetas em alguns outros processos, encontrou certa liberdade para escrever a sentença totalmente em versos. Ele, na verdade, considera mais como um texto rimado do que uma poesia. “Quem dera ter os dons dos grandes poetas”, ele diz.

Na sentença, Toledo precisava escrever os requisitos legais. Para isso, escreveu um texto-esqueleto com os fundamentos e as provas jurídicas que comprovavam que aquele prédio sempre foi do Fórum. Depois, o texto foi fluindo, intercalando relatos sensíveis com jargões da área.

Fundamental nessa história foi o relato de Maria Rodrigues Pinto, conhecida como Dona Fia, de 103 anos. Ela mora em frente ao Fórum há mais de meio século e é testemunha ocular de seu uso. Pela idade, para não ter que submetê-la ao testemunho no Fórum, o juiz achou suficiente recolher o relato do lugar onde ela viu a vida passar, a varanda de sua casa. Na sentença, ele a define como “Testemunha presente da história/ Arquivo vivo da memória/ De um povo e seu dia-a-dia”.

Para Toledo, mesmo que a profissão seja formal quase o tempo todo, a sensibilidade e a liberdade são fundamentais nos julgamentos. “Eu preciso cumprir formalidades, mas tem que ter sensibilidade. Em tudo. Os julgamentos devem ser feitos de maneira sensíveis.” Nesse caso, envolvendo um prédio que carrega história, um marco na cidade, não havia como ser diferente. É como ele bem disse: “se fosse em prosa, não seria tão marcante como deveria ser”.

Antônio Augusto Pavel Toledo foi o juiz que escreveu a sentença em forma de poesia (foto: Arquivo Pessoal)

Leia a sentença na íntegra:

JUÍZO DE DIREITO DA VARA ÚNICA DA COMARCA DE PALMA
Autos nº 5000169-84.2021.8.13.0467
Ação de usucapião
Requerente: Estado de Minas Gerais

Vistos etc.

Pede o Estado de Minas Gerais
Que se declare, por usucapião,
Observados os termos legais,
Em originária aquisição,
A propriedade de um sobrado
Onde se encontra instalado
Todo o serviço judicial:
O Fórum Wilson Alvim Amaral.

E para tanto o Estado argumenta,
Que desde a década de quarenta,
No século próximo passado,
Tem a posse do bem mencionado.

Alega que o possui mansamente,
De forma pacífica, inconteste,
Ausente lapso de interrupção.
Sem ato primitivo que documente,
Apresenta, como prova que o ateste,
A placa histórica da reconstrução.

E para melhor embasar o pleito,
Cita doutrina e jurisprudência.
Pede que se reconheça o direito,
Decidindo-se pela procedência.

Procedidas todas as citações,
E cada notificação de rigor,
Seguiu-se o rito sem altercações.
Nenhuma objeção apresentada,
Manifestou o Douto Promotor
A favor da medida pleiteada.

Sendo este o breve relato,
O necessário e adequado resumo,
Estando tudo nos termos, no prumo,
Atento ao instrutório correlato
Focado nos limites do pedido,
Passo a analisar e decido.

Antes do estudo de mérito,
Remontando o tempo pretérito,
Faz-se importante ressaltar,
Que a história deste lugar,
Tem o Fórum como marca.
O surgimento do Município,
Se confunde, desde o princípio,
Com o nascer da Comarca.

Imponentemente erguido,
Na Praça Getúlio Vargas,
Por alguém temido e destemido,
De passagens boas e amargas,
Que firmo não ter existido,
Igual nesta e noutras plagas.


E assim tão bem erigido,
No centro e coração de Palma,
É testemunha eloquente
De um povo, sua gente,
De uma terra e sua alma.

É, portanto, um monumento,
Um portentoso e belo edifício.
Que aos olhos do habitante,
E mesmo do mero viajante,
Demonstra a pujança do início.

Não cabe deixar sem registro,
O bem histórico representado,
Acéfalo do seu legítimo dono.
Necessário preservar tudo isto,
Evocando o tempo passado,
E protegendo do abandono.

Define-se no Código Civil:
Aquele que mansamente se viu,
Possuidor de um bem imóvel,
Adquire-lhe a propriedade,
Tendo o domínio por móvel,
nimo de dono e autoridade.

Mas deve exercer esta posse,
Por década e meia, ao menos;
Sem interrupção, nem oposição.
Ter o bem como se próprio fosse.
Justo título e boa fé é de somenos;
Irrelevante, pra fundar a pretensão.

Poderá pedir, então, ao juiz,
Conforme o estatuto diz,
Que o declare em julgamento.
Para servir de documento,
Que, espelhando a realidade,
Lhe outorgue a titularidade.

As provas colhidas mencionam
Que os serviços funcionam
No prédio objeto do pedido
Há mais tempo que o exigido.

Sugerem os dados coligidos,
Que a posse realmente remonta
O limiar do século passado.
Época áurea de tempos idos
Que, segundo a história conta,
Fora um período abastado.

Não há, como se confessa,
Documento primitivo a respeito.
Mas outros demonstram o direito:
A posse aquisitiva pregressa.

Apura-se exata demonstração
Da época da reconstrução:
Mil novecentos e setenta e sete,
A mil novecentos e oitenta.
Respalda, assim, o que se pede;
O que na exordial se sustenta.

Prova-se devidamente o alegado,
Inclusive com a placa que marca
O centenário da Comarca,
Efusivamente comemorado,
Em mil novecentos e noventa e dois.
E ainda lá se encontra o edifício
Servindo, assim como no início,
Passados tantos anos depois.

Além do acervo fotográfico,
Há nos autos, emblemático,
O depoimento de Dona Fia.
Tomado da varanda de sua casa,
De onde vê o que se passa,
Enquanto o terço desfia.
Testemunha presente da história,
Arquivo vivo da memória,
De um povo e seu dia-a-dia.

Sra. Maria Rodrigues Pinto,
Altiva e de porte distinto,
Do alto de mais de cem anos,
Coerente, segura, sem enganos,
De forma clara, declara:
Desde a década de cinquenta
O prédio que se lhe apresenta,
Serviu somente ao Judiciário;
E não há prova em sentido contrário.

A instrução assim produzida,
Indica, sem um vacilo qualquer,
Que se deve acolher, dar guarida,
À pretensão nos autos trazida,
Àquilo que o Estado requer.

Pelo exposto e fundamentado,
Provada a posse e o tempo exigido,
Demonstrados os requisitos legais,
Não há como não ser acatado,
Na integralidade, o pedido,
Provado o fato, a não poder mais.

É assim que julgo procedente,
A pretensão estatal pertinente,
Declarando a aquisição originária
Da propriedade do bem descrito.
Determino expedição cartorária
Do mandado pra “lançar” o registro.

Não havendo qualquer resistência,
E como o Estado, ademais, é isento,
Descaracterizada a sucumbência,
Ao final deste pronunciamento.

E por conta desta circunstância
Repercutem, como corolários,
Ao menos nesta primeira instância:
Ausências de custas e de honorários.

Tendo a decisão por proferida,
Que atue o serviço, em seguida,
Intimando e também registrando,
Publicando para conhecimento.
E cerrem-se os autos, arquivando,
Após cumprido o julgamento.

Palma, 11 de janeiro de 2022.
Antônio Augusto Pavel Toledo
Juiz de Direito

Por Cecília Itaborahy, sob supervisão de Wendell Guiducci
Fonte: tribunademinas.com.br

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