O magistrado entendeu que a integridade física da vítima está submetida a risco e, por isso, decidiu aplicar as disposições contidas no artigo 313, inciso III, do CPP, bem assim no artigo 12-C, § 2º, da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) no âmbito de um pedido de Habeas Corpus.
O dispositivo prevê a aplicação da prisão preventiva "se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência".
O advogado Eduardo Carnelós afirma que a decisão é completamente ilegal. "O Habeas Corpus é chamado remédio heroico, e serve para coarctar constrangimento ilegal que viole ou ameace a liberdade de alguém. Portanto, não se pode conceber que, ao julgar um pedido de alguém que demonstra necessitar desse remédio, o juiz o transmude em veneno e decrete uma prisão preventiva, 'sanando' de ofício a ilegalidade da prisão em flagrante apontada pela inicial e reconhecida pelo próprio magistrado."
Questionado sobre a transmutação do HC em prisão preventiva, o colunista da ConJur e jurista Lenio Streck vai na mesma linha. "Só no Brasil isso acontece. Por isso é o segundo no ranking (WJP — World Justice Project) dos países com mais juízes parciais. Chegaremos ao topo logo, logo. Em sede de HC, converter em preventiva é buscar lã e sair tosquiado. Correr sozinho e chegar em segundo. Mas não é a primeira vez que isso já aconteceu."
Lenio recorda de decisão que foi tema de uma coluna sua em 2016. Na época, o desembargador José Damião Pinheiro Machado Cogan, do Tribunal de Justiça de São Paulo, de ofício, ao analisar um Habeas Corpus durante um plantão judicial, decretou a prisão preventiva de um homem que furtou um celular.
O criminalista Alberto Toron explica que, de fato, há um vício que não altera a substância do flagrante. "O que chama atenção é a decretação de ofício da prisão preventiva. O STJ firmou entendimento que não se pode impor a prisão preventiva de ofício", diz. O precedente citado, do HC 687.583, foi decidido com base nas alterações trazidas pela lei "anticrime", que vetam a decretação de preventiva de ofício pelo juiz.
No mesmo sentido, o Supremo Tribunal Federal no HC 188.888 entendeu que a Lei 13.964/2019, ao suprimir a expressão "de ofício", vedou, de forma absoluta, a decretação da prisão preventiva de ofício pelo juízo processante.
Para o também criminalista Mathaus Agacci, o caso contém uma assustadora sucessão de graves ilegalidades assemelhadas ao processo penal do inimigo. "Não há mais espaço, após mais de 30 anos da Constituição Federal de 1988, para aviltamentos a comezinhos princípios constitucionais. É preciso racionalizar acerca da real função do processo penal: verdadeiro instrumento a serviço da máxima eficácia do sistema de garantias constitucionais do indivíduo", argumenta.
Por fim, o advogado Welington Arruda afirma que a decisão parece ter sido proferida por um magistrado que nasceu para ser promotor. "O STJ já deixou claro que não pode o juiz decretar prisão preventiva de ofício porque quis o legislador, com a introdução da Lei 13.964/2019, a efetivação do sistema penal acusatório e é assim que o sistema penal brasileiro tem seguido, salvo bizarras e violentas exceções como no presente caso", resume.
Por Rafa Santos
Fonte: Conjur
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