Primeira advogada trans a subir na tribuna do STF relembra vivências: ‘Tentaram me exorcizar aos 15’

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Via @portalg1 | “Minha família me chamou e perguntou ‘O que você tem? Não tem vergonha desse teu jeito de viadinho?’ [SIC]. E eu disse ‘Não sou um viadinho, eu sou uma mulher’. Aí tentaram me exorcizar aos 15 anos [...] Depois daquilo eu decidi representar um papel. E assim foi durante muitos anos”.

Esta é uma das lembranças de Gisele Alessandra Szmidt e Silva, de 52 anos, advogada de Curitiba e a primeira mulher transexual a fazer uma sustentação oral na tribuna do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2017.

Gisele Szmidt se formou em direito em 2010 — Foto: Divulgação/Arquivo pessoal

Na época, Gisele era uma das advogadas que defendiam, pelo Grupo Dignidade, de Curitiba, a legalidade da mudança de nome de transexuais no registro civil sem a necessidade de cirurgia para redesignação de gênero.

No processo, ela foi a última advogada a fazer sustentação oral defendendo que o estado não poderia condicionar a mudança de nome à realização da cirurgia, considerada invasiva e com procedimentos que não são cobertos pela rede pública de saúde.

Quase um ano depois, em março de 2018, o STF decidiu pela legalidade do pedido.

“Mais que a ausência de modificações corporais, eu defendi, desde o começo, que para mudança do registro não deveria ser necessário sequer um processo. É a nossa autonomia. E os demais advogados que defendiam a causa não tocavam neste ponto, mas eu me preparei para isso. Defendi até o fim a mudança apenas na manifestação da vontade”, lembrou.

A dor

Para chegar onde está hoje, Gisele lutou contra tudo – inclusive, contra ela mesma. Afinal, aos 15, mesmo tendo consciência de que era uma mulher, optou por esconder-se para sobreviver.

Segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (Antra), mesmo com uma queda de 20% no assassinato de pessoas transgênero no último ano, o Brasil permanece como o país com a maior taxa de mortes de pessoas trans no mundo.

Das 140 vítimas em 2021, segundo a Antra, 135 eram travestis e mulheres trans.

“Na infância, eu era uma criança muito esperta, inteligente, ia bem no colégio. Mas quando eu estava na sexta série, um professor de educação física me colocou o apelido de 'florzinha'. A partir daí a minha vida se tornou um inferno. Me tornei alvo constante de agressões. Aquela criança que aprendia rápido começou a ter problemas para ficar na sala. Isso prejudicou meu desenvolvimento social”.

A flor

Gisele é advogada do Bloco PT-PV na Câmara de Vereadores de Curitiba — Foto: Divulgação/Arquivo pessoal/Nina Zambiasi.

Gisele iniciou a transição aos 35 anos, quando estava na faculdade de direito.

Ela lembra que, quando começou a fazer procedimentos estéticos para chegar mais perto do seu verdadeiro eu, ainda vivia com ajuda da família, que repudiava sua identificação como mulher.

“Uma hora eu pensei ‘Ou eu vivo, ou fico representando a vida inteira’. Foi uma transição tardia, porque fiquei muito tempo escondida [...] E a transição nada mais é do que a realização de procedimentos que te deixem mais perto das características do gênero que você se identifica. E muitos destes procedimentos são feitos de maneira totalmente clandestina, porque não há suporte. Algumas operações causam sequelas para a vida”.

O término da transição, aos 40, foi marcado por uma série de outros encerramentos na vida. Sua mãe, que enfrentava um câncer e era cuidada pela então bacharel, faleceu – ainda sem aceitar Gisele.

A família, pouco tempo depois, cortou relações com a hoje advogada. E diante dos problemas, ela só viu uma solução:

“Vou fazer valer meu curso de direito”.

Gisele foi aprovada em meados de 2014 no exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), após fazer um cursinho online e estudar de segunda a segunda. A partir daqui, ela passou a desbravar lugares nunca antes acessados por mulheres trans, como:

    • Primeira advogada trans da região sul do Brasil
    • Primeira assessora parlamentar trans na Assembleia Legislativa do Paraná
    • Primeira assessora parlamentar trans na Câmara Municipal de Curitiba (Bloco PT/PV)
    • Primeira advogada trans a fazer sustentação oral no STF

Gisele e ministro Luís Roberto Barroso na Universidade de Harvard, durante palestra em 2018 — Foto: Divulgação/Arquivo pessoal

“Ainda tem um abismo pra gente ser inserida em um contexto social, relacionada a trabalho, a namoro, casamento [...] O que nós precisamos é de ferramentas de combate à transfobia. E isso na vivência trans não acontece. Somos rotineiramente fetiche, excluídas e até impedidas de usar o banheiro. É uma luta por dignidade”.

Por Caio Budel, g1 PR — Curitiba
Fonte: g1.globo.com

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