A regra entraria em vigor na próxima terça-feira (5/11) e os médicos inscritos nos conselhos regionais de medicina teriam até 5 de março de 2025 para se adequarem a ela. A íntegra da decisão do magistrado pode ser conferida aqui. Já o texto da Resolução 2.382/2024 pode ser lido aqui.
Segundo o magistrado, a Constituição Federal reserva exclusivamente à União a competência para legislar sobre a organização e as condições para o exercício de profissões, incluindo a medicina. Ele citou que “ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, destacando que, ao impor obrigações adicionais sobre a prática médica sem a devida autorização legal, o CFM extrapolou sua competência.
Além disso, o CFM não possui competência para estabelecer normas obrigatórias que excluem o uso de documentos físicos e exigem o uso de uma plataforma digital específica, segundo a decisão. O juiz observou que a própria Lei 14.063/20 já regulamenta o uso de assinaturas eletrônicas para documentos de saúde e prevê que cabe ao Ministério da Saúde e à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) definir as regras e critérios para validação de documentos digitais.
A resolução poderia ainda representar “concentração indevida de mercado certificador digital por ato infralegal da autarquia, fragilizar o tratamento de dados sanitários e pessoais de pacientes, bem como a eliminação aparentemente irrefletida dos atestados e receituários médicos físicos, quando se sabe que a realidade de médicos e municípios brasileiros exige uma adaptação razoável e com prazos mais elevados para a completa digitalização da prática médica”, segundo o juiz.
O magistrado também entendeu que havia risco de dano irreparável, e que a urgência se justifica pois a resolução representa uma mudança significativa na prática médica. A liminar é válida até o julgamento do mérito da ação.
A liminar foi concedida no âmbito de uma ação anulatória movida pelo Movimento Inovação Digital (MID), associação que reúne empresas do ecossistema digital brasileiro.
“Esperamos que, a partir de agora, se abra um diálogo com o CFM, pois um dos principais problemas da resolução foi a forma unilateral como ela foi feita, contrariando inclusive a autonomia médica”, diz Ariel Uarian, diretor de Políticas Públicas do MID.
O processo tramita sob o número 1087770-91.2024.4.01.3400.
Segurança dos dados e monopólio
Na concessão da liminar, o juiz ainda notou que a resolução do CFM não prevê salvaguardas claras quanto ao armazenamento e ao compartilhamento de dados de pacientes, criando um risco para dados pessoais de saúde. Ao JOTA, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) afirmou na semana passada que “até o presente momento não foram identificadas denúncias, petições de titular e instauração de processo no âmbito da atividade de fiscalização referentes à Resolução”.
“A principal fragilidade é a centralização dos dados e a forma como se dá a autorização para que eles sejam compartilhados”, diz Uarian, do MID. A obrigatoriedade de uso da plataforma cria, segundo o movimento, uma estrutura monopolista que favorece o CFM, permitindo-lhe explorar economicamente dados sensíveis dos pacientes, violando o princípio da proteção de dados e da privacidade previsto na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Assim, a resolução concederia ao CFM um monopólio, e prejudicaria outros fornecedores de tecnologias que poderiam ser utilizadas nesse setor.
Além disso, segundo o MID, o CFM não apresentou estudos suficientes, como Avaliação de Resultado Regulatório (ARR) e Análise de Impacto Regulatório (AIR), que poderiam justificar a necessidade de uma plataforma única e obrigatória para a emissão de atestados.
Resolução
A resolução do Conselho, publicada no início de setembro, definia a plataforma Atesta CFM como único meio para emissão e gestão de atestados, tanto físicos quanto digitais, e os elementos que garantiriam sua segurança, autenticidade e rastreabilidade, como QR codes. Após o período de adaptação de 180 dias à nova plataforma, médicos ficariam proibidos de utilizar portais ou plataformas não compatíveis com o Atesta CFM para a emissão de atestados.
Os “altíssimos custos” que as emissões de documentos falsos acarretam para governos e para o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) são citados como justificativa para as medidas na resolução.
No entanto, o Ministério da Saúde afirmou ao JOTA PRO Saúde, em reportagem publicada na newsletter Bastidores da Saúde em 1/11, estudar a possibilidade de ingressar com uma ação judicial contra a resolução. A pasta ainda disse que não participou dos debates para a formulação da resolução do CFM, e que “no SUS, já existem normas e fluxos estabelecidos para a emissão de atestados médicos e odontológicos”. Segundo o ministério, para que um registro seja aceito na Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS), “são realizadas diversas avaliações, como a validade e a veracidade das informações do cidadão, dos profissionais, dos estabelecimentos e das credenciais”.
O CFM também impôs que médicos devem exigir identificação dos pacientes ou responsáveis ao emitir atestados. Os documentos devem conter dados como nome, CPF do paciente, CRM do médico e informações do CID (Classificação Internacional de Doenças). Na resolução, há ainda a previsão de possibilidade que empresas interessadas possam contratar um serviço avançado de validação, pagando uma taxa para receber atestados de empregados via plataforma Atesta CFM, desde que haja consentimento prévio dos trabalhadores.
Reação do CFM
A reportagem entrou em contato com o CFM após a decisão liminar da Justiça, mas não obteve resposta até a publicação. O espaço segue aberto.
Horas antes, porém, o presidente da entidade, José Hiran Gallo, lamentou em coletiva de imprensa a posição do Ministério da Saúde sobre o Atesta CFM. Ele informou que o conselho não foi oficialmente comunicado sobre a decisão da pasta de contestar a Resolução nº 2.382/2024 e também disse levará o tema para discussão junto ao órgão público nas próximas agendas conjuntas.
Durante a coletiva, a equipe do CFM argumentou que a plataforma trará um ganho social, uma vez que deve reduzir a emissão de atestados falsos no território nacional. Sobre questionamentos por parte de outras entidades privadas, o CFM afirmou que há falta de entendimento sobre o processo de validação dos documentos e da criação da plataforma, que, para o conselho, está dentro dos limites legais da autarquia.
Em relação à segurança de dados, os representantes do conselho foram vagos, limitando-se a dizer que o sigilo médico-paciente e o respeito à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) é um dos pilares da criação do instrumento. Entretanto, não chegaram a dizer quais as ferramentas utilizadas para proteger as informações pessoais armazenadas no banco de dados de eventuais vazamentos ou usos indevidos.
O conselho também informou que teve uma conversa preliminar com o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) para propor uma parceria na validação de documentos digitais. Entretanto, a proposta ainda precisa de ajustes técnicos e jurídicos para avançar.
Carolina Unzelte, Jéssica Gotlib
Fonte: @jotaflash
Postar um comentário
Agradecemos pelo seu comentário!