Desde logo, registro minha posição favorável à criminalização de manifestações de ódio baseadas em sexo, desde que de forma simétrica, abrangendo tanto a misoginia quanto a misandria.
A proteção penal contra discursos de ódio é legítima, mas deve obedecer aos princípios constitucionais da legalidade, taxatividade, proporcionalidade, isonomia, liberdade de expressão e segurança jurídica.
O PL, contudo, foi proposto em um ambiente fortemente influenciado por polêmicas midiáticas e distorções conceituais, especialmente envolvendo o termo “red pill”.
Para compreender o impacto disso na redação do tipo penal, é necessário contextualizar o fenômeno.
1.1. A polêmica da “Red Pill” e o PL 896/2023
A tramitação do PL 896/2023 ocorreu em meio à polarização sobre gênero, intensificada pela controvérsia em torno do termo “red pill”.
A expressão, originalmente metáfora de “despertar crítico” no filme The Matrix, foi ressignificada ao longo do tempo. O documentário The Red Pill (2016), de Cassie Jaye, evidenciou desigualdades frequentemente ignoradas que afetam homens e meninos — como disputas de guarda, suicídio masculino, violência doméstica contra homens, riscos laborais e desatenção institucional à saúde emocional masculina.
Apesar disso, reduziram “red pill” a um rótulo depreciativo, dissociado das questões legítimas que motivaram sua adoção inicial.
1.2. Razões para evitar o termo no debate atual
Diante da cristalização pública dessa deturpação, o termo “red pill” perdeu precisão conceitual e adquiriu forte carga negativa. Pesquisadores e defensores dos direitos dos homens têm evitado utilizá-lo para não reforçar estigmas ou associações indevidas.
Na condição de advogada e pesquisadora voltada ao estudo dos “Direitos dos Homens e Meninos”, adoto deliberadamente essa terminologia por entendê-la como a mais rigorosa e adequada à definição e delimitação do meu objeto de pesquisa.
2. TRAMITAÇÃO LEGISLATIVA ATUALIZADA E ANÁLISE DAS EMENDAS NO SENADO
O texto final do Projeto de Lei nº 896/2023 foi apreciado em decisão terminativa pelas Comissões da Câmara dos Deputados em 22 de outubro de 2025, sendo aprovado e imediatamente encaminhado ao Senado Federal.
Atualmente, o PL tramita no Senado em ritmo célere, com prioridade política declarada e expectativa de votação rápida.
O texto aprovado pelas Comissões passou a ter a seguinte redação normativa:
Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional ou praticados em razão de misoginia.
Parágrafo único. Considera-se misoginia a conduta que manifeste ódio ou aversão às mulheres.” (NR)
Art. 2º-A Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional, ou por misoginia: (...) (NR)
Art. 20. Praticar, induzir ou incitar discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, ou a misoginia: (...) (NR)
Art. 2º A ementa da Lei nº 7.716/1989 passa a vigorar com a seguinte redação:
“Define os crimes resultantes de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, ou praticados em razão de misoginia.”
Além do texto-base encaminhado pela Câmara, o projeto recebeu seis emendas apresentadas por Senadores, as quais ainda não foram aprovadas e seguem pendentes de deliberação.
Entre elas, destaca-se a Emenda nº 3, que propõe uma nova definição ampliada de misoginia:
“Para os fins desta Lei, considera-se misoginia a conduta dolosa que promova ou incite discriminação, hostilidade, segregação ou violência contra mulheres, em razão de sua condição feminina, vedada a punição de manifestações de natureza artística, científica, jornalística, acadêmica ou religiosa, quando ausente a intenção discriminatória.”
2.1. Análise Crítica da Emenda nº 3 à luz deste parecer
Conforme demonstrado na análise jurídica subsequente, a Emenda nº 3 não corrige os vícios estruturais do PL, ao contrário, reforça a indeterminação do tipo penal e amplia o espaço de subjetividade judicial, mantendo:
- Violação à legalidade estrita e à taxatividade penal;
- Ausência de delimitação material do bem jurídico tutelado;
- Risco de ativismo judicial e perseguição ideológica;
- Impacto desproporcional sobre a liberdade de expressão;
- Expansão simbólica e indevida do Direito Penal;
- E, sobretudo, a persistente assimetria constitucional pela ausência de proteção contra a misandria.
Assim, a Emenda nº 3 não soluciona, e em alguns pontos agrava, os problemas de constitucionalidade e segurança jurídica já identificados no texto-base do PL 896/2023.
3. ANÁLISE DO CONCEITO DE MISOGINIA NO PL 896/2023
O PL pretende incluir como crime de racismo “a conduta que manifeste ódio ou aversão às mulheres, baseada na crença da supremacia do gênero masculino”.
Embora o objetivo declaradamente seja combater discursos de ódio, a redação viola princípios estruturantes do Estado de Direito.
3.1. Violação da Legalidade Estrita e da Taxatividade Penal (art. 5º, XXXIX/CF)
A Constituição exige lei penal estrita, determinada, previsível. O STF, em reiterada jurisprudência, já afirmou que o tipo penal deve ser preciso e determinado, não podendo delegar ao intérprete o papel de definir condutas.
A redação do PL: não descreve condutas, descreve sentimentos (“ódio”, “aversão”), não especifica ações típicas, não estabelece circunstâncias, não define elemento objetivo, não delimita agente, vítima, meio, intensidade, finalidade, contexto.
O tipo do PL é aberto em excesso, permitindo enquadramento arbitrário de: opiniões, críticas sociais, debates acadêmicos, estatísticas, humor, comentários polêmicos, diagnósticos científicos.
Isso viola frontalmente o princípio da taxatividade penal (lex certa).
3.2. Falta de Delimitação do Bem Jurídico Tutelado
Todo tipo penal deve proteger um bem jurídico específico.
O PL não deixa claro qual é: igualdade? dignidade da mulher?
paz pública? combate ao ódio? proteção moral? tutela da integridade psicológica feminina? defesa de narrativas ideológicas?
A Lei nº 7.716/1989 foi construída para proteger acesso a bens e serviços, igualdade material e proteção contra discriminação institucional.
O PL não descreve conduta, não descreve ação discriminatória, não vincula condutas a prejuízos concretos, não define o núcleo do tipo.
Logo, o tipo penal carece de tipicidade material — exigência doutrinária e jurisprudencial consolidada. O PL viola essa premissa.
4. SIMETRIA E ISONOMIA (ART. 5º, CAPUT, CF): O PROBLEMA DA AUSÊNCIA DA MISANDRIA
A assimetria legislativa torna-se ainda mais evidente quando observamos que, no plano sociocultural, manifestações de misandria vêm sendo progressivamente normalizadas em determinados segmentos do discurso público. Esse fenômeno — embora não atribuível a todas as mulheres — aparece com maior frequência, cuja retórica prioriza exclusivamente interesses percebidos como femininos e, em alguns casos, adota um enquadramento hostil ou depreciativo do masculino.
Nesses contextos, proliferam expressões que tratam homens como categoria homogênea e intrinsecamente problemática: “potenciais agressores”, “abusadores em potência”, “não deveria existir homens”, “o mundo seria melhor sem eles” ou até mesmo a ideia de que “descobriu que é menino? Aborte”.
Tais discursos, ainda que não representativos da sociedade como um todo, circulam com impressionante naturalidade, revelando um padrão de tolerância social ao ódio contra homens que contrasta fortemente com a intolerância — justa e necessária — às manifestações misóginas.
Esse ambiente simbólico contribui para uma assimetria moral na recepção de atos de violência, como ilustram episódios amplamente debatidos em que agressões ou assassinatos cometidos por mulheres contra homens recebem aplausos, justificativas ou atenuações automáticas por parte de determinados grupos de mulheres — não por todas — especialmente quando tais atos são retrospectivamente enquadrados sob alegações genéricas de “violência psicológica” ou “traição”, mesmo em contextos nos quais já existiam instrumentos legais disponíveis, como medidas protetivas, separação de corpos ou divórcio.
A discrepância entre a gravidade do ato e a reação social, observada em certos casos nas justificativas oferecidas por algumas mulheres, revela um duplo padrão na sensibilidade pública ao sofrimento masculino.
A produção cultural também sinaliza esse fenômeno. Livros como “Eu odeio os homens”, “Homens são necessários?” e “O homem infelizmente tem que acabar” são frequentemente apresentados como provocações intelectuais, mas expressam, de modo emblemático, o eco de uma misandria coletiva não reconhecida, que opera de forma normalizada e raramente recebe reprovação social proporcional.
Em um contexto no qual discursos misândricos circulam com relativa aceitação e, por vezes, chegam até a ser celebrados, a decisão legislativa de criminalizar apenas a misoginia e desconsiderar por completo a misandria revela-se ainda mais problemática.
Do ponto de vista constitucional: sexo biológico é variável simétrica; homens e mulheres ocupam idêntica posição jurídico-constitucional; o Estado não pode conferir tutela penal máxima a um grupo e negar qualquer proteção ao outro.
Logo, a opção legislativa por criminalizar exclusivamente a misoginia configura: violação do princípio da igualdade (art. 5º, caput); discriminação legislativa injustificada;
parcialidade estatal; favorecimento ideológico; inconstitucionalidade material.
Tal omissão do legislador contraria também: art. 3º, IV, que exige combate a qualquer forma de discriminação; art. 5º, XLI, segundo o qual “a lei punirá qualquer discriminação atentatória a direitos e liberdades fundamentais” — expressão que não autoriza seleções arbitrárias baseadas em sexo.
A mensagem implícita transmitida pelo Estado, ao criminalizar apenas a misoginia, é incompatível com a Constituição: um grupo é digno de proteção penal máxima; o outro pode ser ridicularizado, hostilizado e demonizado sem consequência jurídica.
Assim, a assimetria legislativa não apenas viola a isonomia, como reforça — ainda que inadvertidamente — a própria normalização social da misandria, contribuindo para um ambiente desigual de proteção e reconhecimento.
5. SUBJETIVIDADE E VIESES JUDICIAIS: RISCO DE ATIVISMO E PERSEGUIÇÃO IDEOLÓGICA
O tipo penal proposto permitirá: decisões subjetivas, juízos morais, julgamento por convicções pessoais, ativismo judicial.
Com o tipo do PL, magistrados poderão criminalizar críticas ao feminismo, criminalizar denúncias de falsas acusações, criminalizar debates sobre violência contra homens, criminalizar pesquisas sociológicas e criminalizar estatísticas incômodas.
Quando o Estado cria tipos vagos para punir adversários ideológicos, transforma: opositores → inimigos públicos. O PL abre esse precedente grave.
6. IMPACTO NA LIBERDADE DE EXPRESSÃO (ART. 5º, IV E IX)
O STF protege discursos controversos, impopulares e chocantes: ADPF 187 (marchas da maconha): “não há crime em defender publicamente ideias, ainda que polêmicas.” ADPF 548 (liberdade acadêmica): “ideias não podem ser silenciadas por pressão ideológica.”
O PL pune opiniões, pune críticas, pune análises estatísticas, pune discursos incômodos, pune dissidência política.
Consequência: Efeito Inibidor (chilling effect)
Pesquisadores, jornalistas e cidadãos evitarão temas como: falsas acusações, alienação parental, agressões cometidas por mulheres, desequilíbrios legislativos, dados estatísticos de violência contra homens.
Esse efeito é incompatível com a Constituição e com a democracia.
7. EXPANSÃO INDEVIDA DO DIREITO PENAL E FUNÇÃO SIMBÓLICA
A doutrina penal alerta contra: populismo penal, excesso de criminalização, leis simbólicas, uso do Direito Penal para moralização social.
O PL reconfigura o Direito Penal como um instrumento de repressão moral e como mecanismo que acirra a hostilidade entre os gêneros, além de favorecer formas de punição emocional que, em certos contextos, são intensificadas pela mediação e amplificação midiática.
O Direito Penal deve operar como ultima ratio, de forma fragmentária, proporcional e subsidiária; sob minha análise, o PL, contudo, desrespeita todos esses princípios.
7. RECOMENDAÇÕES E SALVAGUARDAS NECESSÁRIAS
7.1. Definição objetiva de condutas
O tipo penal deve especificar: condutas concretas, atos discriminatórios verificáveis, dolo específico, circunstâncias delimitadas.
7.2. Simetria: inclusão da misandria
Para cumprir a Constituição, é indispensável incluir: misandria → discriminação baseada em sexo contra homens.
7.3. Salvaguardas à liberdade de expressão
Exclusão explícita para: debate acadêmico, sátira, humor, ironia, crítica social, opinião política, estatísticas, denúncias de abusos, divergência ideológica.
7.4. Diretrizes técnicas ao Judiciário
Exigir: prova concreta; nexo entre discurso e discriminação institucional; vedação de interpretação extensiva ou analógica; proibição de ativismo político no uso do tipo penal.
8. A PSICOLOGIA DO RESSENTIMENTO EM NIETZSCHE APLICADA À HOSTILIDADE DE GÊNERO
Para oferecer um fundamento filosófico que aprofunde a análise crítica deste parecer, especialmente diante da escalada de antagonismos entre os sexos e da seletividade moral presente no debate público, recorro à psicologia do ressentimento em Nietzsche. A reflexão nietzschiana fornece um instrumental conceitual preciso para compreender como discursos que pretendem combater injustiças podem, quando orientados pela moralidade reativa, reproduzir a mesma lógica que condenam. Esse enquadramento teórico não apenas ilumina a dinâmica contemporânea entre misoginia e misandria, como também evidencia os riscos de legislações construídas sob tensão emocional e polarização moralizados.
A partir dessa chave interpretativa, torna-se possível examinar o fenômeno da hostilidade de gênero com maior profundidade e rigor crítico.
A advertência de Nietzsche, segundo a qual “aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não se tornar um monstro”, lembra que quem combate um mal corre o risco de reproduzi-lo, e por isso quem denuncia a misoginia também precisa reconhecer a misandria que é praticada e normalizada.
Quando discursos de gênero se apoiam em culpa coletiva, manifesta-se o conceito central da crítica nietzschiana à moralidade reativa, na qual o ressentimento transforma frustrações em moralização, produz uma falsa superioridade moral e legitima hostilidades como se fossem justiça. Nesse processo, o outro deixa de ser visto como indivíduo e passa a ser tratado como culpado essencial, distorcendo o debate e impedindo a compreensão real do conflito.
A misandria, quando é praticada livremente, funciona como expressão dessa moralidade reativa, criando a figura de um inimigo absoluto e servindo como válvula para frustrações acumuladas.
É importante ressaltar que, nesse combate de gênero, forma-se muitas vezes uma percepção de assimetria, pois manifestações de hostilidade contra homens acabam recebendo maior tolerância social, e até aplausos. Esse fenômeno aparece quando declarações públicas de figuras de grande visibilidade, afirmando que “homens no Brasil matam mulheres”, são amplamente celebradas.
Soma-se a isso o fato de que, em determinados contextos online, algumas mulheres aplaudem e valorizam publicações que enaltecem outras mulheres que cometeram homicídios contra seus parceiros, mesmo em situações nas quais existiam meios legais disponíveis para lidar com as circunstâncias posteriormente alegadas — como suposta violência psicológica ou traição — por meio de medidas protetivas, separação de corpos ou divórcio. Tal dinâmica contribui para a normalização de um imaginário hostil em relação aos homens.
Mais perigoso ainda é que tal discurso cria no imaginário de parte da população feminina a ideia de que a prática de crime contra companheiros estaria legitimada quando alegadas violência psicológica e traição e, pior, que seria possível construir uma falsa acusação post mortem para justificar o ato, o que representa um claro incentivo à prática do crime.
A naturalização da misandria alimenta uma misoginia reativa, pois toda hostilidade tende a gerar respostas simétricas, criando um ciclo de ressentimento, no qual homens e mulheres passam a depender da figura do inimigo que imaginam combater, transformando diferenças em antagonismos moralizados.
Dentro dessa dinâmica, torna-se errado e injusto incriminar a reprovável misoginia quando não se aplica o mesmo rigor crítico à igualmente reprovável misandria, pois analisar o problema apenas por um dos lados impede compreender a raiz da hostilidade entre gêneros, que surge de narrativas ressentidas que se retroalimentam e sustentam a moralidade reativa.
Romper esse ciclo exige reconhecer que a moralização seletiva mantém o conflito vivo e que somente um debate profundo, honesto e simétrico pode converter a questão de gênero em um campo de compreensão e superação, e não em uma guerra moral interminável.
9. CONCLUSÃO
O PL 896/2023, embora motivado por finalidade legítima (combate ao ódio), apresenta: inconstitucionalidade formal (legalidade, taxatividade), inconstitucionalidade material (isonomia), inadequação sistemática (equiparação indevida ao racismo), violação à liberdade de expressão, risco de ativismo judicial, seletividade punitiva, potencial censório, uso simbólico do Direito Penal.
Reitero minha posição favorável à criminalização do preconceito baseado em sexo, desde que: objetiva, simétrica (misoginia + misandria), proporcional, constitucional, técnica, e não instrumentalizável politicamente.
Dessa forma, na minha avaliação, o PL, em sua forma atual, não atende aos requisitos mínimos do Direito Penal democrático, revelando-se inconstitucional, ineficaz, inseguro e perigoso para a liberdade civil.
Fernanda Tripode (@fernandatripodeadv) é advogada no escritório Fernanda Tripode Advocacia e Consultoria Jurídica.
Este artigo representa a opinião da autora e não reflete necessariamente nossa posição editorial.

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