Traficante ou usuário: afinal, de quem é o ônus da prova? Por Matheus Trindade

bit.ly/39jFzWK | A Lei nº 11.343/06 é alvo de graves críticas, mesmo após 14 anos da sua promulgação. As mencionadas críticas decorrem, principalmente, da vagueza e do amplo alcance dos tipos penais definidos na lei, sendo um dos maiores pontos de debate a diferenciação entre as figuras do usuário de drogas e do traficante.

O usuário de drogas é figura prevista no art. 28 da Lei de Tóxicos, cujos verbos elencados no caput do mencionado dispositivo são adquirir, guardar, ter em depósito, transportar e trazer consigo. Nesse dispositivo legal, o maior problema surge no seu §2º, que estabelece que o juiz, para reconhecer a condição de usuário de drogas, deverá observar

à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.

Veja-se que, como bem alerta GIACOMOLLI (2008), o legislador deixou a cargo do juiz a diferenciação entre usuário e traficante, fazendo isso

através de elementos com elevado grau de subjetividade e extremamente conflituosos.

Não é à toa que THUMS e PACHECO (2007), logo após a edição da Lei 11.343/06, já haviam classificado como maldosa a postura do legislador ordinário ao ter inserido os critérios de avaliação da conduta típica no artigo correspondente ao usuário, pois

pode autorizar aos afoitos à conclusão de que, se não ficou provado que a droga se destinava para consumo, então a conduta será tráfico.

De outro lado, tem-se no art. 33 da legislação em comento a figura do traficante, que possui no seu caput ao menos 18 verbos nucleares, sendo parte integrante deles os mesmos 05 verbos típicos do caput do art. 28.

Diante desse contexto, exsurge uma questão fulcral e que frequentemente vem sendo debatida na doutrina e nos tribunais: havendo a congruência verbal entre os tipos penais do art. 28 e art. 33 da Lei 11.343/06, a quem incumbe realizar a prova da condição de usuário/traficante?

Lembra-se que, por força constitucional (art. 5º, inciso LVII), toda pessoa criminalmente acusada é presumidamente inocente, regra de tratamento esta que emana para o processo penal e, por conseguinte, atinge o ônus da prova. Nessa senda, o art. 156 do CPP, dispõe no seu caput que

a prova da alegação incumbirá a quem a fizer. 

Portanto, sendo o Ministério Público, de um lado, o titular da ação e, de outro lado, todo acusado presumidamente inocente, é certo que o ônus da prova do fato denunciado incumbe à acusação. Nesse sentido, é valorosa a explanação de PACELLI e FISCHER (2016):

Se é necessária a certeza provada para a condenação, fundada, pois, em material probatório efetivamente produzido em juízo, há que se concluir caber à acusação, sobretudo ao Ministério Público, titular da ação penal pública, os ônus da prova do fato, da autoria e das circunstâncias e demais elementos que tenham qualquer relevância para a afirmação do juízo condenatório.

Todavia, não é toda a carga probatória que importa somente à acusação, na medida em que cabe à defesa realizar a prova se alegada excludente fática, de ilicitude ou de culpabilidade.

Com efeito, no caso em específico da Lei de Drogas, onde há congruência verbal entre os tipos penais previstos no art. 28 (usuário de drogas) e no art. 33 (traficante), o ônus de comprovar a situação de traficância é da acusação em caso de denúncia formulada nesse sentido, seja pela aplicabilidade do estado de inocência da pessoa acusada, seja pela regra de tratamento disposta no art. 156 do CPP.

Como anteriormente citado, pela proposição das condições do usuário estarem dispostas no §2º do art. 28 da Lei de Tóxicos se pode entender que, uma vez não comprovados os requisitos, a lógica seria a imputação pelo art. 33 do mesmo diploma legal.

Contudo, tal postura nada mais seria do que uma ilegítima inversão do ônus da prova, como se na regra probatória dos crimes de tóxicos fosse aplicável o equivocado brocardo in dubio pro societate, algo incompatível com o estado de inocência previsto na Constituição e com o in dubio pro reo (LIMA, 2016).

Traficante ou usuário

Em que pese a lógica processual penal seja relativamente simples, é certo que a jurisprudência vem oscilando quanto à definição do ônus da prova, em que pese o Superior Tribunal de Justiça tenha importante julgado no sentido discorrido na presente coluna. Veja-se:

RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO DE DROGAS. PLEITO DESCLASSIFICATÓRIO. DESNECESSÁRIO REVOLVIMENTO DE PROVAS. ALEGADA POSSE DE DROGAS PARA CONSUMO PRÓPRIO. AUSÊNCIA DE PROVA DA TRAFICÂNCIA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. ÔNUS DA PROVA NO PROCESSO PENAL. REGRA PROBATÓRIA DECORRENTE DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA. RECURSO PROVIDO. 1. Não se desconhece o entendimento pacífico da jurisprudência – tanto deste Superior Tribunal quanto do Supremo Tribunal Federal – de que a pretensão de desclassificação de um delito exige, em regra, o revolvimento do conjunto fático-probatório produzido nos autos, providência incabível, em princípio, em sede de recurso especial. 2. Todavia, a moldura fática delineada na sentença e no acórdão não demonstrou o fim de mercancia, nem afastou de forma inconteste a afirmação do réu de que a droga apreendida destinava-se ao seu consumo pessoal. 3. A Lei n. 11.343/2006 não determina parâmetros seguros de diferenciação entre as figuras do usuário e a do pequeno, médio ou grande traficante, questão essa, aliás, que já era problemática na lei anterior (n. 6.368/1976) – e que continua na legislação atual. 4. Não por outro motivo, a prática tem evidenciado que a concepção expansiva da figura de quem é traficante acaba levando à inclusão, nesse conceito, de cessões altruístas, de consumo compartilhado, de aquisição de drogas em conjunto para consumo próprio e, por vezes, até de administração de substâncias entorpecentes para fins medicinais. 5. A atual (embora não recente) crise do sistema penitenciário brasileiro e o fato de o Brasil possuir, hoje, a terceira maior população carcerária do mundo – segundo o Centro Internacional de Estudos Prisionais – ICPS (International Centre for Prision Studies) – recomendam não desconsiderar as ponderações feitas neste caso concreto de que efetivamente é temerária, também sob essa perspectiva, a condenação do acusado pelo crime de tráfico de drogas. 6. A conduta imputada pelo Ministério Público – dentre as várias previstas no art. 33, caput, da Lei n. 11.343/2006 (que é de conteúdo múltiplo) – foi a de trazer consigo “11 (onze) pedras de crack, divididas em papelotes individuais e escondidas em suas partes íntimas”. Em nenhum momento, o acusado foi visto vendendo, expondo à venda ou oferecendo entorpecentes a terceiros. 7. Não foram mencionados elementos que demonstrem, de modo satisfatório, a destinação comercial do entorpecente localizado com o recorrente. Com efeito, não houve campana policial para averiguação da conduta do recorrente, mas tão somente uma abordagem pessoal em virtude do fato de o coacusado – que conduzia a motocicleta – ter se evadido ao avistar a autoridade policial. 8. O Ministério Público – sobre quem pesa o ônus da prova dos fatos alegados na acusação – não comprovou a ocorrência de mercancia ilícita da droga encontrada em poder do recorrente, ou que a tanto se destinava, de modo que remanesce somente a conduta de trazer consigo a droga, para consumo pessoal, prevista no tipo do caput do art. 28 da Lei n. 11.343/2006. […] (REsp 1769822/PA, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 27/11/2018, DJe 13/12/2018)

Destarte, em linhas conclusivas, pode-se perceber que, em que pese ainda possa pairar dúvida acerca do ônus da prova nos casos de congruência verbal entre os verbos típicos do art. 28 e art. 33 da Lei 11.343/06, a doutrina e a jurisprudência vem caminhando para a definição do debate de modo a respeitar a Constituição Federal e o Código de Processo Penal, ou seja, incumbindo a acusação de provar a diferenciação entre as figuras legais.
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REFERÊNCIAS

GIACOMOLLI, Nereu José. Análise crítica da problemática das drogas e a lei 11.343/06. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 16, n. 71, p. 181–204, mar./abr., 2008.

LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada: volume único. 4. ed. Salvador: JusPODVIM, 2016.

PACELLI, Eugênio; FISCHER, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e a sua jurisprudência. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2016.

THUMS, Gilberto; PACHECO, Vilmar. Nova lei de drogas: crimes, investigação e processo. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2007.
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Por Matheus Trindade e Kayron Torma
Fonte: Canal Ciências Criminais

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