Pandemia do coronavírus, teoria da imprevisão e revisão de contratos

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bit.ly/2V2zHwY | Em meio à pandemia ocasionada pela rápida propagação da Covid-19, bem assim diante da necessidade de isolamento social para evitar/mitigar o contágio entre a população, o mercado financeiro mundial já sente os fortes impactos da crise que se avizinha, de modo que, nada obstante a crise sanitária, todos se preparam para uma provável recessão após esse período.

O Poder Executivo, nas suas mais diversas esferas e atuações, vem promovendo uma série de medidas no intuito de minimizar o impacto da pandemia no mercado. A produção legislativa, nessa toada, também tem sido grande. Há projetos de lei em trâmite visando a alterar ou flexibilizar disposições legais até então vigentes com o objetivo de mitigar os efeitos da recessão e adequar circunstâncias jurídicas a essa nova crise global, sem precedentes.

O Projeto de Lei nº 1.179/2020 ("PL 1.179/2020"), de autoria do senador Antonio Anastasia, é uma dessas produções legislativas, cuja tramitação segue acelerada no Congresso Nacional. Em síntese, o projeto propõe alterações significativas em diversos dispositivos que constam regulados na Lei nº 10.406/2002 ("Código Civil"), sob a exegese de um Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado ("RJET"). Nada obstante o PL 1.179/2020 se volte para assuntos como prescrição e decadência, direito de família e sucessão, entre outros, preocupa-nos nesse momento a proposição a respeito das regras para revisão dos contratos que, no final das contas, afeta diretamente as relações civis e empresariais em tempos de crise.

Com efeito, em seu "Capítulo IV - Da Resilição, Resolução e Revisão dos Contratos", o PL 1.179/2020 propõe que "não se consideram fatos imprevisíveis, para os fins exclusivos dos art. 478, 479 e 480 do Código Civil, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou substituição do padrão monetário" (art. 7º).

Nesses termos, o PL 1.179/2020 limita em muito — para dizer o mínimo — a aplicabilidade da Teoria da Imprevisão aos Contratos, disciplinada nos artigos 317[1], 478[2], 479[3] e 480[4], todos do Código Civil, no ambiente empresarial e, principalmente, no mercado financeiro. A bem da verdade, o projeto de lei, se aprovado com esse texto, acaba por ser contraditório. Isso porque, de um lado, reconhece que há uma crise mundial sem precedentes que afeta a todos os mercados e demanda intervenções drásticas na legislação; de outro, procura limitar os efeitos da revisão contratual e da Teoria da Imprevisão, como se o câmbio, a inflação ou a desvalorização monetária não guardassem nenhuma relação com a pandemia.

Como cediços – o que foi recentemente bem abordado por Rogério Lauria Marçal Tucci em artigo publicado sobre o tema[5] –, os contratos firmados no âmbito do direito privado podem ser revisados (e até mesmo resolvidos) se e quando eventos imprevisíveis, não conhecidos quando da celebração da avença, tornarem suas prestações excessivamente onerosas a um dos contratantes. Note-se que o elemento essencial e indispensável para que seja determinada a rescisão e a resolução contratual é a presença de fato imprevisível.

Nesse sentido, a doutrina especializada entende como evento imprevisível "acontecimentos estranhos, independentes da vontade das partes, que elas não podem prever e que de tal forma alteram as circunstâncias que, na execução, o contrato deixa de corresponder, não só à vontade dos contratantes, como à natureza objetiva dele"[6]-[7]. Ainda, na IV Jornada de Direito Civil, aprovou-se o Enunciado nº 366, segundo o qual "o fato extraordinário e imprevisível causador da onerosidade excessiva é aquele que não está coberto objetivamente pelos riscos próprios da contratação".

O fundamento da Teoria da Imprevisão e da Onerosidade Excessiva está, desse modo e nas precisas palavras de Nelson Rosevald, na necessidade de "atender ao princípio da justiça contratual, que impõe o equilíbrio das prestações nos contratos comutativos, a fim de que os benefícios de cada contratante sejam proporcionais aos seus sacrifícios"[8].

No sentido puramente técnico, portanto, tem-se que pandemias, guerras, grandes e globais depressões econômicas — e os consectários decorrentes desses eventos — devem ser entendidas como eventos imprevisíveis, que impactam nas negociações privadas, elevando os custos envolvidos em todo e qualquer contrato, desequilibrando as prestações obrigacionais inicialmente entabuladas entre as partes e, assim, inviabilizando — ou ao menos sobrecarregando — a manutenção das avenças firmadas, na forma inicialmente imaginada.

A pandemia da Covid-19, nesse cenário, nos parece exemplo mais claro — típico de doutrina — acerca da necessidade de aplicação da Teoria da Imprevisão e da Onerosidade Excessiva aos contratos de prestação continuada vigentes nas relações civis, empresariais e, principalmente, financeiras. A situação global decorrente da pandemia vem causando um efeito avassalador nas grandes economias mundiais, tais como China, EUA e Alemanha, além de diversos países de Europa, Ásia e Américas. Diante de sua extensão global, sem precedentes e sem previsão para término, a Covid-19 traz, inevitavelmente: (I) variação de inflação em razão da crise; (II) a variação cambial sem precedentes e diretamente vinculada aos efeitos negativos da crise; e (III) a desvalorização do padrão monetário. Consequências puramente financeiras, jamais previstas nessa amplitude.

Ou seja, como bem reconhece o Poder Legislativo, a pandemia não foi prevista e nem esperada por ninguém, demandando medidas drásticas. Os efeitos no mercado financeiro, como inflação e variação cambial, decorrentes da pandemia, não podem passar batidos. Com todo o respeito ao projeto de lei, não há explicação lógica, financeira ou econômica para essa exclusão quando, amplamente, reconhece-se que estamos diante de uma situação imprevisível e sem precedentes no mundo.

Não se desconhece que a jurisprudência pátria, até o momento, tenha se mostrado relutante à revisão dos contratos, com amparo em eventos econômicos locais (tais como variação cambial e desvalorização da moeda). Nos termos desses precedentes, tais fatos não seriam de todo imprevisíveis no nosso cenário econômico nacional[9] (ex.: a crise cambial não é imprevisível no Brasil e todos deveriam considerar essa variável para a realização de negócios no país). Esse raciocínio, todavia, não se aplica à hipótese enfrentada decorrente da Covid-19.

A questão que ora se coloca — cuja resolução deve ser diversa daquela até então posta no projeto — é que a pandemia e seus efeitos macroeconômicos globais vão muito além de tudo o que se viu no mundo nos últimos tempos (o que, repise-se, o Poder Legislativo reconhece). E, mais do que isso, os efeitos diretos dessa pandemia geram efeitos na inflação, no câmbio e na desvalorização do padrão monetário, atingindo premissas contratuais econômicas que, certamente, irão tornar contratos impossíveis de serem cumpridos.

Nessas circunstâncias — da crise "sem precedentes" —, é inviável, por definição, aplicar entendimento da jurisprudência a respeito de câmbio, inflação ou desvalorização da unidade monetária. Não é possível que, ao mesmo tempo, a crise seja sem precedentes e, de outro lado, pretenda-se aplicar julgados que supostamente seriam "análogos". Daí, portanto, o questionamento ao projeto de lei.

Assim, o PL 1.179/2020, ao propor que o aumento de inflação, a variação cambial e a desvalorização do padrão monetário não serão considerados fatos imprevisíveis, impossibilita a revisão contratual frente à desenfreada oscilação do mercado e resulta na manutenção da desproporção entre as partes e na impossibilidade de cumprimento das obrigações, na forma acordada originalmente. Sob o ponto de vista de mercado financeiro, d.v., parece-nos que implicaria, em grande parte, na inaplicabilidade da Teoria da Imprevisão, mormente o fato de que câmbio, inflação e padrão monetário são, provavelmente, alguns dos primeiros fatores que são afetados no caso de uma crise mundial como a que se coloca nesse momento.

Desse modo, considera-se que o PL 1.179/2020, embora tenha o escopo de manter as relações comerciais em tempos obscuros, acaba, em seu artigo 7º, inviabilizando a revisão/rescisão contratual diante do cenário da Covid-19, pois as consequências que advém da referida pandemia são exatamente as hipóteses excluídas no artigo 7º, de severa variação do câmbio e descontrole inflacionário, sem prejuízo de outras consequências advindas das restrições decorrentes da crise.

Adotar a posição sugerida no PL 1.179/2020, no sentido de que "não se consideram fatos imprevisíveis, para os fins exclusivos dos artigos 478, 479 e 480 do Código Civil, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou substituição do padrão monetário" (artigo 7º), no cenário da pandemia, além de parecer uma visão simplista do problema grave que enfrentamos torna, em grande parte, letra morta a Teoria da Imprevisão no âmbito do mercado financeiro, no momento da história da humanidade em que ela teria maior e mais necessária aplicação. Não nos parece proposta razoável no momento em que a revisão dos contratos se torna premente.
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[1] Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.

[2] Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.

[3] Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do contrato.

[4] Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva.

[5] https://www.conjur.com.br/2020-abr-01/rogerio-tucci-alteracoes-imprevisiveis-circunstancias

[6] NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosamaria de Andrade. Código civil comentado. 8ª ed., São Paulo: RT, 2011. p. 589.

[7] “A teoria da imprevisão decorre da constatação de que o contrato, celebrado para ser respeitado e cumprido, segundo as mesmas condições existentes no momento da celebração, pode ser alterado, excepcionalmente, se ocorrerem fatos supervenientes imprevisíveis que estabeleçam o desequilíbrio entre as partes, onerando sobremaneira uma delas, com proveito indevido da outra. Nesta hipótese, incide a cláusula rebus sic stantibus, mediante a qual se retorna ao estado de equilíbrio anterior, afastando- se qualquer hipótese de supremacia e de vantagem indevida de uma das partes, em desfavor da outra que ficaria prejudicada. Segundo a doutrina de Orlando Gomes, "... quando acontecimentos extraordinários determinam radical alteração no estado de fato contemporâneo à celebração do contrato, acarretando conseqüências imprevisíveis, das quais decorre excessiva onerosidade no cumprimento da obrigação, o vínculo contratual pode ser resolvido ou, a requerimento do prejudicado, o juiz altera o conteúdo do contrato, restaurando o equilíbrio desfeito. Em síntese apertada: ocorrendo anormalidade da álea que todo contrato dependente do futuro encerra, pode-se operar sua resolução ou a redução das prestações" \ Para Cunha Gonçalves, há como que um defeito do ato jurídico (segundo o conceito do Direito Brasileiro): "...é tão injusto e imoral aproveitar um contraente, excessivamente, de circunstâncias que para o outro ou para ambos eram imprevisíveis no momento do contrato. (...)” (TJSP; Apelação Com Revisão 9142407-42.2001.8.26.0000; Relator (a): Carvalho Viana; Órgão Julgador: 3ª Câmara (Extinto 1° TAC); Foro de São Caetano do Sul - 1ª. Vara Cível; Data do Julgamento: 19/03/2002; Data de Registro: 15/05/2002).

[8] ROSENVALD, Nelson. Código civil comentado. Coord.: Cezar Peluso. 7ª ed. Barueri: Manole, 2013, p. 530.

[9] AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. ARRENDAMENTO MERCANTIL. JUROS REMUNERATÓRIOS. ONEROSIDADE EXCESSIVA. REVISÃO. DIVISÃO EQUITATIVA. 1. A jurisprudência desta Corte é de que os juros remuneratórios cobrados pelas instituições financeiras não sofrem a limitação imposta pelo Decreto nº 22.626/33 (Lei de Usura), a teor do disposto na Súmula nº 596/STF. 2. Consoante jurisprudência desta Corte, a desvalorização súbita da moeda brasileira ocorrida em janeiro de 1999 configura onerosidade excessiva a afetar a capacidade de o consumidor adimplir suas obrigações contratuais, mas, diante da previsibilidade de modificação da política cambial, a significativa valorização do dólar norte-americano deve ser suportada por ambos os contratantes de forma equitativa. Precedentes. 3. Agravo regimental não provido” (STJ - AgRg no REsp: 716702 RS 2005/0004864-8, Relator: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 13/05/2014, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 02/06/2014).
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Alexandre Faro é advogado.
Elide B. de Lima é advogada.
Luíta Maria Vieira é advogada.
Fonte: Conjur

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