Cultivo de cannabis e as recentes decisões do STJ sobre a inviolabilidade do domicílio

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bit.ly/30bqnt6 | O cultivo de plantas psicotrópicas destinadas à preparação de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica, ainda que para fins terapêuticos, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, pode configurar, em tese, o crime previsto no art. 28, §1°, da Lei de Drogas brasileira (n. 11.343/2006).

Em 3 de dezembro de 2019, a propósito, a ANVISA aprovou a regulamentação do uso medicinal de produtos feitos à base de “maconha”, mas rejeitou a proposta para autorizar o seu autocultivo terapêutico.

Em se tratando, portanto, de cultivo para consumo pessoal de plantas destinadas à preparação de pequena quantidade da substância, poderá o grower ser submetido à medidas alternativas, como advertência sobre os efeitos das drogas; prestação de serviços a comunidade e/ou comparecimento a programa ou curso educativo.

Daí a importância de se diferenciar o cultivo para consumo pessoal do cultivo para tráfico de drogas, uma vez que os núcleos do tipo previstos no art. 28, §1° (semear, cultivar e colher) são igualmente ações nucleares que configuram o crime do art. 33, §1°, II, porém, com cominação de sanções diferentes (reclusão de cinco a quinze anos e pagamento de quinhentos a mil e quinhentos dias-multa, referente ao art. 33, §1°, II).

Será preciso analisar, para tanto, o elemento subjetivo especial “consumo pessoal” e se as plantas eram destinadas “à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica” (art. 28, §1°).

A Lei de Drogas brasileira, ao contrário das legislações de outros países (no Uruguai, por exemplo, é permitido o autocultivo de até seis plantas, com produção anual de, no máximo, quatrocentos e oitenta gramas), não define o que seria “pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica”.

No Brasil, portanto, cabe ao juiz analisar o caso concreto e decidir se se trata de cultivo para consumo pessoal ou tráfico de drogas, atendendo “à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente” (art. 28, §2°).

Apesar da ausência de critérios objetivos para a distinção das condutas, podendo sujeitar o usuário ao agir das agências do sistema de justiça criminal sob o rótulo de “traficante”, com impacto no estado de coisas inconstitucional que é o sistema penitenciário brasileiro, há quem tenha optado, por diversas razões, mas principalmente para fins terapêuticos ou recreativos, por cultivar a planta em casa, ainda que sem autorização judicial para tanto.

Diante da conjuntura proibicionista brasileira e por se tratar de crime permanente – ou seja, cuja consumação se alonga no tempo, dependente da atividade do agente, que poderá cessar quando este quiser (Bitencourt, 2011, p. 255), autorizando sua prisão em flagrante enquanto não cessar a permanência – são inúmeros os casos analisados pelos tribunais superiores em que se impugna, à luz do direito fundamental à inviolabilidade do domicílio, a legalidade de diligências policiais de busca domiciliar sem ordem judicial que resultaram na prisão em flagrante do morador por cultivar a planta da cannabis.

Isso porque a CRFB/88, em seu art. 5°, XI, dispõe que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito […]”.

O presente artigo se debruça especificamente sobre o que se entende por flagrante delito, mormente nos casos de crimes permanentes, pois configura um dos pressupostos autorizadores da busca domiciliar sem autorização judicial, uma vez que, como vimos, sua consumação se prolonga no tempo, autorizando a prisão em flagrante porque, nesse caso, considera-se que o agente está “cometendo a infração penal” (art. 302, I, do CPP [Lopes Jr., 2020, p. 658]).

Uma interpretação açodada nos levaria a concluir que, em se tratando de cultivo ilegal de “maconha”, estaria a autoridade policial e seus agentes autorizados a realizar buscas domiciliares, seja durante o dia ou noite, e independente de ordem judicial, e prender em flagrante o grower enquanto este mantivesse a plantação em sua casa.

A doutrina comprometida com o respeito aos direitos e garantias fundamentais do indivíduo, por outro lado, defende a necessidade de prévia visibilidade da prática do crime permanente para que se permita o ingresso da polícia, sem mandado judicial, na casa a fim de proceder à eventual prisão em flagrante, sob pena de ilicitude das provas assim obtidas.

De acordo com esse entendimento, portanto, é vedado à autoridade policial, sem determinação judicial, forçar a entrada no domicílio de quem seja sem informações concretas de que naquele local provavelmente estaria ocorrendo a prática de um crime.

O debate foi levado ao STF, que no RE n. 603.616/RO, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado sob a sistemática da repercussão geral em 4 e 5/11/2015, fixou a seguinte tese: “a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados”.

O ministro Gilmar Mendes, relator do caso, explicou em seu voto que “a entrada forçada em domicílio, sem uma justificativa prévia conforme direito é arbitrária. Não será a constatação de situação de flagrância, posterior ao ingresso que justificará a medida. Os agentes estatais devem demonstrar que havia elementos mínimos a caracterizar fundadas razões (justa causa) para a medida”.

Em casos recentes (aqui, aqui e aqui), o STJ, seguindo a tese fixada pelo STF, anulou as provas obtidas em diligências policiais de busca domiciliar sem a devida autorização judicial e que culminaram na prisão em flagrante e condenação do morador pela prática de crime de natureza permanente, considerando não haver sido demonstrada a necessária justa causa que justificasse o ingresso dos agentes, sem ordem judicial, na casa.

Um desses casos é o HC n. 566.818/RJ, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, j. 29/4/2020, onde se entendeu que o fato de uma cadela conduzida pela guarnição policial constatar a presença de drogas e sinalizar em frente à residência do morador não configura justificativa prévia apta à franquear o ingresso, sem mandado judicial, no domicílio.

Em outra oportunidade, no HC n. 561.360/SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, j. 31/3/2020, igualmente se decidiu pela ilegalidade da diligência de busca domiciliar sem a necessária determinação judicial, anulando-se as provas obtidas em desrespeito ao direito fundamental à inviolabilidade do domicílio, uma vez que o patrulhamento de rotina em que os policiais seguem o veículo, por não ter esse parado, e adentram no condomínio, sem nenhuma ordem judicial, não configura fundadas razões que indiquem que dentro do apartamento ocorre a prática de crime.

Por fim, no RHC n. 89.853/SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, Quinta Turma, j. 18/2/2020, restou assentado que “a tentativa de fuga do agente ao avistar policiais, por si só, não configura a justa causa exigida para autorizar a mitigação do direito à inviolabilidade de domicílio”, bem como que “a mera denúncia anônima, desacompanhada de outros elementos preliminares indicativos de crime, não legitima o ingresso de policiais no domicílio indicado, estando ausente, assim, nessas situações, justa causa para a medida”.
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Por Thiago Hygino Knopp
Fonte: Canal Ciências Criminais

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