O que a mula do tráfico de drogas e o laranja têm em comum?

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Mula é a designação dada às pessoas que realizam o transporte de substancias ilícitas, incorrendo na figura típica do artigo 33 da Lei nº 11.343/2006, qual seja, tráfico de drogas.

laranja, por sua vez, é a pessoa utilizada para se consumar o crime de lavagem de dinheiro. É o indivíduo que empresta seus dados para encobrir bens e valores ilícitos de terceiros.

Apesar de tais personagens aparentemente não se relacionarem em nada, observa-se um ponto em comum: tanto a mula quanto o laranja, quando desconhecem o esquema criminoso, não integram a associação para o tráfico (artigo 35 da Lei nº 11.343/2006) e a organização criminosa (artigo 2º, da Lei nº 12.850/2013), respectivamente.

Nesse sentido, em relação à chamada mula do tráfico de drogas, o Superior Tribunal de Justiça, no informativo de jurisprudência em teses que tratou da Lei n° 11.343/06 [1], trouxe a tese de que "a condição de 'mula' do tráfico, por si só, não afasta a possibilidade de aplicação da minorante do parágrafo 4º do artigo 33 da Lei 11.343/2006, uma vez que a figura de transportador da droga não induz, automaticamente, à conclusão de que o agente integre, de forma estável e permanente, organização criminosa".

Para a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, a pessoa que transporta drogas ilícitas nem sempre integra a associação para o tráfico. Assim, o colegiado negou provimento a recurso em que o Ministério Público questionava a aplicação da minorante do tráfico privilegiado sob o argumento de que o transporte de droga, em quantidade expressiva, pressupõe que a pessoa responsável pela tarefa seja parte da estrutura criminosa [2].

De acordo com a ministra Laurita Vaz, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem acompanhado a atual posição do Supremo Tribunal Federal, entendendo que, se não há prova inequívoca do envolvimento estável e permanente do agente com a organização criminosa, não se pode afastar automaticamente a caracterização do tráfico privilegiado.

Ou seja, a mula do tráfico de drogas nem sempre incorre na figura típica da associação para o tráfico, "sendo imprescindível, para tanto, prova inequívoca do seu envolvimento, estável e permanente, com o grupo criminoso" [3], nos termos da reiterada jurisprudência das cortes superiores.

Por outro lado, o crime de pertencimento a organização criminosa está regulamentado na Lei 12.850/13, a qual conceitua a organização criminosa, em seu artigo 1º, §1º, como sendo "a associação de quatro ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a quatro anos, ou que sejam de caráter transnacional".

A tipificação penal encontra-se no artigo 2º do referido diploma legal: "Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa".

A jurisprudência majoritária entende que, para a descrição típica do crime de pertencimento a organização criminosa não se exige que todos os seus membros tenham conhecimento uns dos outros e das suas respectivas tarefas.

De fato, não se exige que um membro de uma organização criminosa tenha conhecimento de todos os outros membros e de suas funções. No entanto, a lei é clara: exige-se isso, sim — e não há como negar, pois consta da redação expressa do tipo —, a associação de quatro ou mais pessoas para o fim de obter vantagem mediante a prática de infrações penais.

Nessa perspectiva, pode-se condenar o laranja pelo crime de organização criminosa sem a demonstração do intuito de se associar a, no mínimo, outras três pessoas para cometer infrações penais?

Talvez se a acusação comprovar que, mesmo sem conhecer ou se relacionar com os demais membros da hipotética organização criminosa, o laranja teria, de alguma forma, se associado a eles (ou a pelo menos três deles).

No entanto, quando a narrativa fática não demonstra claramente a associação com mais pelo menos três pessoas (mesmo sem conhecê-las) com o intuito de realizar infrações penais com fim de obtenção de vantagem indevida, deve-se reconhecer a atipicidade da conduta

Nesse sentido, no julgamento da Ação Penal nº 470 ("mensalão") pelo Supremo Tribunal Federal, ficou assentado que a configuração da organização criminosa depende da comprovação da existência de "esforço articulado dos réus" para a prática do ilícito, além de "relação de absoluta sujeição" entre eles. Ainda, têm de ser demonstradas e provadas a consciência e a vontade dos agentes de organizarem-se com o fim de obter vantagem de qualquer natureza, de forma estável e permanente.

Não basta o suposto cometimento de crimes (como a lavagem de dinheiro, no caso do laranja), e tampouco o cometimento de crimes em conjunto com outro agente. É necessário estrutura ordenada, divisão de tarefas, hierarquia, esforço articulado entre os corréus, além da consciência e vontade de se organizar dessa maneira.

Conclui-se, portanto, que a narrativa fática da conduta imputada como associação para o tráfico, assim como aquela exigida para a tipificação do crime de pertencimento a organização criminosa, deve sempre demonstrar a associação do cidadão com pelo menos mais uma — no caso da associação para o tráfico — ou três — no caso da organização criminosa — pessoas, mesmo que não as conheça ou saiba de suas funções no esquema criminoso, com intuito de cometer infrações penais, sob pena da narrativa se mostrar atípica.
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[1] https://www.conjur.com.br/2019-ago-25/publicacao-traz-entendimentos-atualizados-stj-lei-drogas.

[2] AgRg no REsp 1.772.711.

[3] STJ, 5ª Turma, relator ministro Ribeiro Dantas, Julgado em 17/04/2017. Em mesmo sentido, colhem-se, a título exemplificativo, os precedentes do Pretório Excelso formados nos julgamentos dos HC 132459, relator: ministro Ricardo Lewandowski, julgado em 13/12/2016, e HC 134597, relator: ministro Dias Toffoli, julgado em 28/06/2016.
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Ava Garcia Catta Preta é advogada criminalista, sócia do escritório De Macedo Buzzi e Souza Advogados Associados, especialista em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e membro da Comissão de Acompanhamento da Reforma Criminal da OAB-DF.

Ana Carolina de Macedo Buzzi é advogada e sócia do escritório De Macedo Buzzi e Souza Advocacia e Consultoria.
Fonte: Conjur

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