1. INTRODUÇÃO
A questão fundiária é um problema que sempre esteve presente no Direito, desde os seus primórdios. Solucionar quem é o real proprietário das terras motivou toda a evolução do debate da história da ciência jurídica, pois esse assunto ocasionou discussões e brigas entre as pessoas. O Direito moderno tentou apaziguar isso, ou ao menos dar regras justas ao debate, afim de que seja possível, por meios legais, determinar a quem pertence uma terra de forma justa.
O presente artigo embarca nessa discussão, através de um debate doutrinário e com a legislação, visando entender melhor um dos instrumentos que busca essa apaziguação, a usucapião. Esse mecanismo é de conhecimento popular, porém suas regras e limites ainda são desconhecidos para muitos, que não sabem exatamente como é possível requerer e, principalmente, quando tem acesso a esse direito.
É desse desconhecimento que surge a necessidade dos estudiosos e operadores de Direito, que por muitas vezes também desconhecem a totalidade desse instrumento jurídico, um olhar mais atento para o que a doutrina e a legislação apontam sobre o tema, com as mudanças jurídicas que acontecem naturalmente e com aquilo que já está estabelecido.
Essa ferramenta é essencial para o bom desenvolvimento da sociedade, e do direito, pois a regularização fundiária é um tema que impacta diversos outros campos sociais, como recolhimento de tributos, pacificação social afim de evitar disputas que pesam o judiciário, planejamento urbano e a luta pela moradia digna para aqueles que necessitam.
Todos esses temas entram nesse leque de espaços que são atingidos pelo debate da regularização e como a usucapião serve para ajudar a diminuir esses problemas, seja para questões de imóveis abandonados ou que são de uso familiar, por cessão ou outros exemplos que estão dentro da lei.
2. CONCEITOS E FUNDAMENTOS DA USUCAPIÃO
Usucapião é um dos instrumentos mais conhecidos e polêmicos do direito civil, visto que as dificuldades para seu entendimento pelas pessoas de fora do campo jurídico criam barreiras em sua aceitação e no seu uso prático. Conceituar esse mecanismo é essencial para que não ocorra questionamentos significativos sobre sua existência e aplicabilidade em casos concretos. O próprio nome do instituto explica sua essência, afinal Usus vem de Posse e Capio vem de adquirir, no latim.
Para iniciar esse percurso sobre a Usucapião é importante entender o seu conceito, sua espinha dorsal e sua razão de existir. Esse instrumento permite a aquisição de uma propriedade por aquele que tem a sua posse de forma contínua, pacífica e ininterrupta por tempo determinado em lei. Essa definição resumida é a base para o entendimento de todo o conceito por trás do Usucapião.
O domínio perpétuo tem limites e condições. Ao proprietário não é dado negligenciar o seu direito, sob pena de perdê-lo no interesse social. Segundo um brocardo italiano, “o amor faz passar o tempo e o tempo faz passar o amor”. Até o amor se perde com o tempo... (COSTA, 199, P. 322)
A existência do direito a propriedade não ultrapassa os limites impostos pelo próprio direito ou pela sociedade como um todo, como a função social da propriedade e sua negligência ao uso. Isso significa dizer que, embora seja proprietário de um terreno, o sujeito não está imune das aplicações dos princípios do direito e do estado, sendo que seu direito só se preserva enquanto respeitar os requisitos básicos.
É importante entender o que significa dizer cada uma das características necessárias para se configurar a usucapião, pois são ferramentas necessárias para a sua existência, a ausência de algum desses requisitos impede que se fale em aquisição de propriedade.
A intenção desse instrumento, como explica Sarmento (2013) é de uma regularização de imóveis daqueles que não tinham sua propriedade por alguma situação patrimonial. A autora explica que esse instituto nasceu no Direito Romano e veio se aperfeiçoando até chegar ao direito moderno, e ao nacional, no ano de 1850.
No Brasil, a primeira lei que dispôs sobre propriedade imobiliária foi a de nº. 601, de 18 de setembro de 1850, popularmente conhecida como “Lei de Terras”, aprovada durante o reinado de D. Pedro II, duas semanas depois da Lei Eusébio de Queiroz, que abolia o tráfico negreiro no Brasil. A Lei nº. 601/1850 tinha como objetivo organizar as doações de terras feitas desde o início do processo de colonização portuguesa, regularizar as áreas ocupadas depois de 1822 e incentivar a vinda de para o Brasil, ao mesmo tempo em que buscava dificultar o acesso à terra por parte desse novo contingente de trabalhadores. (SARMENTO, 2013, p.52)
Como visto no parágrafo destacado acima, a ideia de sistematizar a propriedade afins de evitar confusões que não são desejadas pelo poder estatal vem dos primórdios do Direito e da legislação do Brasil como um país. A Usucapião segue esse princípio, pois é com ela que se garante uma incontestabilidade de um direito, ou seja, uma garantia da propriedade do mesmo por parte de seu novo proprietário.
Passada a necessidade da existência da usucapião e seu percurso histórico longo e complexo, resumido nesse presente trabalho afim de evoluir no debate pontual do artigo, é importante avançar para os requisitos necessários para que possa ocorrer a intervenção jurídica na propriedade de um terreno. Como falado anteriormente, esses requisitos são essenciais para a existência da Usucapião, sendo que falta de qualquer um deles impossibilita o avanço da discussão.
Voltando a Sarmento (2013), a autora explica que os requisitos rígidos aplicados a esse instrumento são necessários pelo poder da Usucapião como um modo originário de aquisição de domínio, visto que não há uma transmissão direta entre o proprietário anterior e aquele que agora obtém a propriedade.
Isso cria um cenário em que se torna essencial uma rigidez jurídica, visto que o ganho originário de uma propriedade pressupõe a perca dessa mesma propriedade por aquele que era proprietário, ainda que seja por sua conivência ou ausência de ação que permitiu que os requisitos necessários fossem alcançados. “que sofre a ação de usucapião, perda da propriedade, o que justifica a preocupação do legislador em criar requisitos rígidos para a aquisição por usucapião” (SARMENTO, 2013, p.52). Como há essa relação de origem e perda de posse, explica-se naturalmente a rigidez legislacional, a fim de evitar que ocorra distorções e prejuízos a terceiros.
2.1. Requisitos básicos
Os requisitos fundamentais da Usucapião são a Posse, o Espaço Temporal e a Coisa Hábil. Embora ocorra diferenças entre elas dependendo da situação, essas 3 características existem em todas as modalidades aceitas pela legislação nacional.
A primeira delas, a Posse, é determinante até mesmo para o início das conversas da Usucapião, pois é necessário que aquele que pretende alcançar a propriedade por meio desse instituto tenha a sua posse, ou seja, resida ou mantenha sob seu domínio aquilo que deseja que seja considerado seu. Essa posse tem que ser contínua, mansa e pacífica, como a doutrina chama, com “animus domini”, cabendo aquele que deseja a propriedade provar que teve domínio daquilo sem nenhuma intervenção do proprietário anterior.
Isso, por obvio, exclui situações que não são desejadas de origem de propriedade, como em posses ilegais ou em situações de aluguel ou comodato, pois nessas situações há relação com a legalidade da posse ou com a vontade do proprietário anterior, que cedeu por algum benefício financeiro para si.
Um dos modos de entender as posses que permitem a usucapião é entender quais não permitem. Bleixuvehl (2018) explica que essa separação foi objetivada pelo legislador afim de evitar confusões em que posses não pacíficas ou que tinham anuência para uso por parte do proprietário não fossem confundidas para fins de usucapião.
Importante ressaltar também que existem classificações para as posses, e, que nem todas as posses permitem a tutela jurídica, incluindo a Usucapião, sendo a sua classificação o que definirá o tipo de tutela elencada no Código Civil. Dentre os tipos de posses podemos destacar a posse injusta, definida desta maneira por ser violenta, clandestina ou precária, há também a posse de má-fé, com ou sem justo título, entre várias outras, que ensejam somente as ações possessórias, já para a Usucapião, a posse deverá conter requisitos específicos tais como decurso do tempo, a posse mansa e pacífica, justo título, e, em alguns casos o ânimo de dono (BLEIXUVEHL, 2018, p.4)
Como visto no parágrafo citado, essas formas de posse impede a mudança de propriedade, pois não são as desejadas pelo instituto. Ele serve a fim de que ocorra uma regularização fiduciária de terrenos que o proprietário antigo não dava sua função social e um novo o adquiriu para prover nova funcionalidade a ele.
O segundo pressuposto essencial da Usucapião é o Espaço Temporal, que varia da modalidade que será exercida. Esse é um requisito mais simples de ser considerado, visto que seu efeito probatório se dá por diversas formas, como testemunhos, fotos, documentos ou correspondências que comprovam a permanência da pessoa sob posse do objeto em questão.
Como será apresentado posteriormente neste trabalho, esse efeito temporal é uma variável que se refere sobre a coisa que se tem como pleito, portanto não há uma regra geral a ser seguida. Essa variação se refere a natureza da coisa em posse e estão determinadas no Código Civil ou em regras complementares.
Por fim o último requisito essencial é que a posse se dê em Coisa Hábil. Esse é um conceito um pouco mais complexo que os anteriores, pois limita a natureza daquilo que pode ser objeto da usucapião.
São passíveis de usucapião apenas as coisas que possam ser apropriadas, inseridas no comércio. Assim, são insuscetíveis de usucapião direitos pessoais, bens gravados com cláusula de inalienabilidade, bens indivisíveis, bens de incapazes e bens de uso comum e especial, dentre outros. (SARMENTO, 2013, p. 52)
Essas são as características essenciais que precisam para a existência de uma Usucapião, guardada as particularidades de cada modalidade que virá a seguir nesse trabalho. É uma análise doutrinária, mas que consta na legislação e que se fazem de base para esse instrumento jurídico.
3. MODALIDADES DE USUCAPIÃO
A usucapião é um instituo jurídico que tem suas bases fixadas no Código Civil, permitindo assim diversas modalidades previstas na legislação brasileira. No seguinte capítulo serão abordadas as principais modalidades e as suas especificidades no que se refere a posse, tempo e a natureza do objeto.
É importante destacar de início que a modalidade é importantíssima para a garantia da usucapião, pois é baseada nela que se contabiliza alguns elementos essenciais para a formação da demanda. Como esses elementos variam entre si, é possível haver confusão entre eles, deixando de fora pessoas que poderiam ter o direito ou fazendo com que pleiteiem propriedades que não objeto de usucapião, seja por tempo ou por outra razão que possa vir a acontecer.
A primeira, e mais conhecida, modalidade que será apresentada nesse artigo é a Usucapião Extraordinária, que está prevista no art. 1.238 do Código Civil. Como consta no texto da lei em questão, para essa modalidade é necessária que a natureza da coisa reclamada seja um imóvel e que seu possuidor o mantenha por 15 anos com as características de posse apresentadas no capítulo anterior.
O justo título, preconizam César Fiúza e Sílvio Venosa, deveria ser a justa causa ou fundamento do direito. Embora ilegítimas, servem de fundamento à aquisição de um direito real. Desta forma não se exige que seja necessariamente um documento: "Escrituras não registráveis por óbices de fato, assim como formais de partilha, compromissos de compra e venda, cessão de direitos hereditários por instrumento particular, recibo de venda, procuração em causa própria, até simples autorização verbal para assumir a titularidade da coisa, podem ser considerados como justo título". 12 A boa-fé surge como elemento saneador do justo título, consiste em não prejudicar o possuidor. Logo, a noção de justo título está ligada intimamente com a boa-fé. (BRANT, 2011, p. 8)
Essa modalidade previa 20 anos até 2002, quando o novo Código Civil foi promulgado. Em parágrafo único esse tempo se reduz a 10 anos caso o possuidor tenha feito seu terreno de moradia.
A Usucapião ordinária se difere da extraordinária pela necessidade de justo-título e boa-fé e está prevista no art. 1.242. Doutrinariamente conceitua-se como a situação que o possuidor não sabia que a sua posse era de outro proprietário, tomando sem imaginar-se de outra pessoa. Isso foi previsto no Enunciado 68 da I Jornada do Direito Civil.
Enunciado 86. A expressão "justo título", contida nos arts. 1.242 e 1.260 do Código Civil, abrange todo e qualquer ato jurídico hábil, em tese, a transferir a propriedade, independentemente de registro. (1 Jornada do Direito Civil, 2002)
Essa diferenciação é essencial pela questão de tempo de posse, pois a legislação prevê que em caso de terreno adquirido onerosamente o prazo vai para apenas cinco anos, contanto que o possuidor o faça de moradia ou realizado investimentos de interesse social e econômico.
A constituição de 88 especifica um caso de usucapião, chamado doutrinariamente de Usucapião Especial Constitucional Urbana, que é terrenos de até 250 metros quadrados em área urbana que foi de posse por 5 anos para moradia, desde que o possuidor não tenha outras propriedades ou imóveis.
Essa modalidade visa proteger o direito constitucional à moradia, visto que esse terreno faz uso próprio ou familiar e está em consonância com aquilo que o legislador constitucional desejava. Nesses casos não importa o estado civil dos moradores para que esse direito seja adquirido.
Outra modalidade que está prevista em leis suplementares é a Usucapião Especial Urbana Coletiva, que tem requisitos parecidos com a anterior, mas que se refere a um grupo de pessoas e tem particularidades. A norma, fixada no art. 10 do Estatuto da Cidade, regulamenta as mesmas necessidades especiais para sua fixação, como não possuir imóveis e uso para moradia. Segundo Sarmento (2018) essa modalidade tem por objetivo a legitimação de ocupações em áreas urbanas para fins familiares.
É admissível a soma do tempo de posses, consoante o parágrafo único da norma 'xada no art. 10 do Estatuto da Cidade, devendo o Juízo no processo de usucapião atribuir igual fração ideal do terreno a cada possuidor, independentemente da dimensão da área que cada um ocupe, salvo a hipótese de acordo escrito entre os condôminos, estabelecendo frações ideais diferenciadas. O condomínio especial constituído é indivisível, não sendo passível de extinção, salvo deliberação por dois terços dos condôminos, no caso de execução de urbanização posterior à constituição do condomínio. As deliberações relativas à administração do condomínio especial serão tomadas por maioria de votos, obrigando os demais, discordantes ou ausentes. (SERMENTO, 2018, p. 56)
A última usucapião que esse artigo tratará é a Rural, prevista no art. 191 da Constituição Federal. Seu tempo é de 5 anos e limita o terreno a ser reivindicado em no máximo cinquenta hectares, desde que tenha a tornado produtiva e feito moradia no mesmo local.
4. PROCESSO DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA
A usucapião é um instrumento essencial para a redistribuição de terras e para a regularização fundiária. Em um país com concentração de imóveis e renda e com desigualdade social que culminam em diversos outros problemas, ter um mecanismo que torna o acesso à moradia, que é uma garantia constitucional, mais fácil e desburocratizado é um avanço na questão de políticas públicas.
Costa e Romeiro (2022) explicam que ocupações foram a principal forma de acesso a moradia para famílias de baixa renda, que encontraram espaços inutilizados para fazer uso e que a regularização fundiária surgiu da necessidade de fazer com que elas tivessem garantias de seus direitos e desse regularidade para a situação.
Regularizar as moradias se torna essencial no contexto de investir em outras políticas públicas que são necessárias para o bom desenvolvimento das cidades, como escolas, segurança e acesso a água e esgoto. Só a partir de uma regularização e, posteriormente, de um estudo aplicado aos locais de moradia que essas políticas conseguem atingir o máximo de pessoas possíveis.
Essa preocupação é antiga, embora a regulamentação seja mais aplicada recentemente, mas desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 que o direito à moradia é tratado como uma urgência.
Cumpre mencionar que o Brasil é signatário desses tratados internacionais, e por isso suas disposições estão incorporadas no direito interno. O reflexo dessas normas internacionais é a razão pela qual se considera que o direito à moradia esteve incorporado ao ordenamento jurídico pátrio, antes mesmo de sua adoção expressa por meio da Emenda Constitucional (EC) no 26, de 2000. (COSTA, ROMEIRO, 2022, p.258)
Cabe salientar a importância dessa regularização e que há uma necessidade direta da intervenção do poder público, agindo para fazer com que as pessoas consigam obter esse direito, dada a premissas básicas como o direito à moradia e aos serviços prestados pelas cidades para a sua população.
Tanto os processos de regularização fundiária quanto a produção de novas moradias devem se ocupar, para além do direito à moradia, da efetiva integração da participação dos cidadãos nos processos de tomada de decisão, bem como da garantia de acesso aos bens materiais e simbólicos que traduzem a ideia de cidade (Fernandes e Alfonsin, 2014, p. 19).
Essa regularização vem se adaptando com as novas necessidades da sociedade, como a Lei nº 13.465/2017, que estabeleceu as regras para essas situações em áreas com restrições ambientais, flexibilizando alguns quesitos que eram previstos anteriormente e atribuídos aos municípios algumas responsabilidades que não eram previstas a eles, como estudos ambientais para esses casos, a emissão da Certidão de Regularização Fundiária e outras ações previstas na lei.
Existem problemas complexos dentro da sociedade que implicam na necessidade emergencial desse tipo de política, como já apresentado nesse estudo. A existência de uma sociedade tão desigual cria problemas que ultrapassam a esfera da moradia, atingido as cidades com situações como superlotação de áreas, transporte público e acesso à educação e a saúde.
Com o desenvolvimento de leis para regularização e o melhor entendimento sobre os processos legais da usucapião existe a capacidade de garantir um melhor acesso para as pessoas ao direito à moradia e com ela o desenvolvimento da sociedade como um todo.
5. ASPECTOS LEGAIS E PROCEDIMENTAIS DA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA
Como visto no capítulo anterior, há uma série de leis específicas sobre regularização fundiária, além das que são aplicadas a Usucapião, que regulamentam esse procedimento. Por ser um objeto de interesse nacional, o direito à moradia, a Constituição Federal é a base para toda essa discussão.
No art. 6º, inciso III, está previsto o direito à moradia digna para todos, que serve como base para todo esse debate. É importante destacar que moradia digna se refere a uma gama de situações, que não envolvem apenas ter seu terreno, mas também ao direito de nele exercer sua moradia e ter acesso a todos os direitos que lhes são reservados. Essa base é fundamental para entender os motivos que levam a necessidade de uma regularização fundiária.
O estatuto da cidade, já citado nesse estudo, segue com as normas gerais de planejamento urbano e prevê, em seu texto, a regularização fundiária. É essencial para a criação de políticas públicas que as moradias sejam regulares e estejam de acordo com os objetivos dos municípios, sem perder de vista a necessidade de garantir esse direito.
Já a Lei Federal nº 13.465/2017 instituiu o REURB, o Programa de Regularização Fundiária Urbana. Esse é um processo que tem como objetivo a sistematização da regularização fundiária em imóveis irregulares localizados em área urbana. Esse sistema promove uma atualização do cadastro imobiliário das cidades, que permite um planejamento atualizado das políticas públicas para cada região. Além disso promove uma arrecadação tributária mais eficiente, pois os imóveis irregulares não são passíveis desses valores.
A cartilha da Regularização Fundiária Urbana - REURB, discorre que de acordo com a referida lei aprovada recentemente, ela cria novos instrumentos e desburocratiza os procedimentos de regularização, ampliando as possibilidades e a escala de atuação das prefeituras e dos cartórios de registro de imóveis. A REURB surgiu como um novo marco regulatório, assim, conceituando-a no art 9º desta mesma lei como um ”conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes.” (ALMEIDA, 2022, p.15)
Como visto, esse programa foi essencial para o desenvolvimento desse tipo de política, visto que havia lacunas para o poder dos munícipios e regulamenta como eles podem trabalhar para atingir esses objetivos. Explicitar as formas, judiciais e administrativas, que pode ocorrer a regularização desses terrenos cria uma segurança jurídica para os habitantes e os gestores dentro da máquina política municipal e na esfera do direito.
É importante destacar que bens públicos não podem sofrer usucapião, visto que a propriedade não se encontra abandonada pelo seu proprietário, o estado, mesmo que seja a situação momentânea. O STJ, em sumula 619 de 2018, argumentou que “A ocupação indevida de bem público configura mera detenção, de natureza precária, insustentável de retenção ou indenização por acessões e benfeitorias”.
Por óbvio, a mesma situação não poderia se apresentar em relação aos bens públicos, uma vez que a possibilidade de sua aquisição pela usucapião implicaria penalizar não o administrador negligente, que se encontra ali temporariamente, até o final de seu mandato, mas sim a coletividade, o que não se pode admitir. (Spitzcovsky,. 2019, p. 296)
Essa distinção é essencial para fins de estudo dos municípios das áreas que podem ser regulamentadas e as que não podem, por ser o próprio estado o proprietário e que esse não pode ter seu patrimônio atingido pela falta de ação dos seus gestores com o bem público.
Cabe ressaltar que a jurisprudência já caminha nesse sentido, pois o abandono de um imóvel ou terreno público não altera a sua natureza, portanto, não é possível trocar de proprietário por esses meios.
Outro ponto importante a se destacar legalmente sobre o tema é que a jurisprudência vem destacando a importância dos requisitos necessários para a usucapião e negando sua aceitação quando há alguma divergência. Em voto de apelação do Tribunal da Justiça da Paraíba, o desembargador João Alves da Silva manteve a decisão do juiz de primeira instância demonstrando a importância dos requisitos necessários, sendo eles essenciais para a conclusão da usucapião.
Compulsando-se os autos, verifica-se que a autora, ora apelante, promoveu a presente ação visando à usucapião de 03 (três) lotes de terrenos, de inscrições municipais nºs 02.02.098.1.0017.001-196, 02.02.098.1.0032.001-304 e 02.02.098.1.0082.001-626, os quais alega ter adquirido mediante compra feita por meio de contrato particular a Luiz Frazão do Nascimento Filho, em 20 de julho de 1999. Na sentença, considerou o Juízo a quo não estarem demonstrados os requisitos necessários à usucapião ordinária, a despeito da existência do contrato de compromisso de compra e venda (fl. 09), porquanto este não apresenta como sendo transmitente nenhum dos proprietários dos imóveis constantes na cadeia sucessória da escritura pública registrada sob o nº R-1-69.372, em 10 de setembro de 2010 e, para que a demanda fosse julgada procedente com base no contrato de compromisso de compra e venda, necessário que restasse demonstrada a cadeia entre o titular do domínio do bem e os seguintes que o adquiriram por meio de contrato particular, sendo “por demais danoso retirar a propriedade registral para entregá-la àquela que não provou que possui justo título, tampouco utilizou efetivamente o bem, ou seja, não fez dele sua moradia ou realizou qualquer obra”. Outrossim, entendeu o Magistrado que, da mesma forma, não restaram demonstrados os requisitos necessários ao reconhecimento da usucapião extraordinária, eis que, “considerando a posse ad usucapionem como sendo a data do compromisso de compra e venda, 20 de julho de 1999, já que a posse dos seus antecessores não restou bem delineada nos autos pela prova testemunhal, o requisito temporal também não restou preenchido, uma vez que, até a data do registro da escritura de compra e venda apresentada pela ré (setembro de 2010), não se completou o prazo previsto no artigo 1.238 do Código Civil”. Adianto que o recurso não merece provimento, devendo a sentença ser mantida em todos os seus aspectos (SILVA, 2017)
Como visto, é inerente ao processo que todos os requisitos previstos estejam presentes. Mesmo com o recurso do interessado, não houve como comprovar que eles existiam, portanto se demonstra o peso da importância do poder probatório nesse tipo de julgamento. Como não foi possível provar sem dúvidas que as comprovações eram verdadeiras, não houve a usucapião nesse caso.
6. DESAFIOS E SOLUÇÕES
O advento dessas políticas públicas vem trazendo avanços no que se refere a situação da moradia no Brasil, embora esse problema ainda seja existente e com uma proporção assustadora. A regulamentação das políticas e o conhecimento e aprimoramento das leis é o primeiro passo, mas esbarra em uma série de desafios que atrasam sua evolução.
A primeira delas a ser destacada é a falta de recursos financeiros por parte de municípios e do estado como um todo, pois a gestão desse problema envolve custos operacionais para o estudo dos casos e, posteriormente, para o desenvolvimento das estruturas necessárias para ofertar uma moradia digna aos habitantes dos terrenos regulamentados, como saneamento básico, transporte público e outros serviços já citados no estudo.
Outro desafio passa na vontade do próprio possuidor em regular o seu terreno, com medo de que possa perder seu bem, ainda que legalmente não seja o proprietário, ou que não consiga arcar com os impostos oriundos dessa legalização.
“A regularização fundiária revela-se uma operação complexa que atinge diferentes atores urbanos. Diante da descentralização administrativa, proposta pela Constituição de 1988 e, ao menos, até a criação do Ministério das Cidades pelo governo Lula em 2003, a esfera municipal exerceu um papel central e muitas vezes solitário em prol da regularização fundiária. A própria ausência de interesse de tantos favelados pela legalização do solo contribuiu evidentemente para o fracasso desses projetos. Ora, o fim das políticas de remoções assegurou uma certa segurança da posse, o que fez diminuir, em muitas favelas, as reivindicações sociais pela regularização do solo. Essa segurança pode, no entanto, revelar-se enganosa, como observamos na retomada atual do discurso, anacrônico, a favor da remoção das favelas. O impacto do aumento da violência sobre as atividades imobiliárias nos arredores das favelas, aliado à profusão de argumentos ecológicos sobre as ameaças causadas por elas à natureza, tem servido para justificar as críticas atuais às políticas de urbanização de favelas. Nesse contexto, a regularização fundiária deve ser compreendida não somente como um meio de suprimir o status fundiário ilegal dos espaços favelados, mas sobretudo como um meio de garantir a inclusão socioespacial das populações faveladas no tecido urbano” (GONÇALVES, 2009: 243)
O trecho em destaque revela que esse conflito sempre existiu quando se fala de regularização fundiária no país, mesmo antes da criação do REURB, pois as pessoas temem que os custos ultrapassem os benefícios do processo. Mesmo a segurança jurídica de ser o proprietário da sua moradia ainda não convence certos grupos de habitantes. Uma solução para esse problema, além da facilitação e desburocratização objetivada pela lei, é a divulgação do conhecimento para essa população, explicando para os mesmos os benefícios dessa regularização. Outro ponto a se destacar é um planejamento urbano mais justo, com essas moradias pagando menos impostos comparado com quem tem moradias melhores e mais bem localizadas.
O último conflito a ser destacado nesse estudo é a falta de motivação política dos gestores e de interesse dos detentores do poder econômico. A relação de falta de moradia atenta contra um número grande de pessoas, mas a minoria que detém o poder para mudar isso segue inerte, ou forçada apenas pela lei, para as suas mudanças.
A propriedade tem uma função social como princípio constitucional e isso deve ser buscado pelo estado, mesmo a contragosto de seus gestores e contra as forças que tentam desacelerar esse processo. O processo teve seu início com o desenvolvimento das leis já citadas, mas também precisa de pressão da população e dos movimentos que lutam pelo acesso a moradia.
A experiência e a história ensinam, todavia, ser uma frequente ilusão pensar-se que a simples previsão em leis de regularização fundiária social garante eficácia imediata em todos os casos em que ela incide. Isso se deve, em grande parte das vezes, pelo não reconhecimento de quem é o verdadeiro sujeito de direito da regularização fundiária (ALFONSIN, 2021, p. 10)
O autor explica em seu artigo que existem forças lutando contra esse sistema, embora seja elogiável todo os avanços que a legislação tenha feito para esse processo. Uma das críticas costumeiras, já apresentada aqui, sobre a falta de recursos públicos para essa regularização, é utilizada de desculpa por gestores para não enfrentar esse grave problema.
Como explicado, os desafios e as solução andam em uma esteira paralela, pois a solução do problema encontra em seu cerne, que é o desinteresse daqueles que podem alterar essa realidade e a falta de ação daqueles que precisam dessas alterações.
CONCLUSÕES
O presente artigo fez uma viagem bibliográfica sobre a legislação e a doutrina para explicar melhor a situação da usucapião no país e como ela é uma ferramenta essencial para a regularização fundiária. Esse instrumento jurídico existe desde o direito romano e evoluiu junto com o direito presente, se tornando complexo no tamanho correto afim de evitar injustiças, mas garantindo o acesso a propriedade daqueles que merecem, segundo o que está na lei.
Esse tipo de instrumento se torna necessário pela própria existência de imóveis ilegais ou abandonados, que servem de moradia para aqueles que precisam. Claro que a lei também se aplica a outras situações, como a usucapião extraordinária que não exige que aquele seja o único terreno do que requere a usucapião, mas em sua maioria serve a atender as necessidades daqueles que não tem
Essa temática se torna essencial para impactar nos debates da promoção do direito à moradia, passando por dois temas que estão nessa conjuntura e que devem ser utilizados, tanto pelas pessoas envolvidas, como pelo poder estatal, para a ampliação desse direito. Atingir esse problema, mesmo com forças e interesses contrários, é uma importante ferramenta de inclusão social e pública, dando espaço a pessoas marginalizadas que não conseguem sua moradia digna garantida pela constituição.
A sociedade civil, por meio de seus movimentos organizados e pela força daqueles que batalham pela democratização da moradia, tem um papel fundamental de cobrança e fiscalização da atuação dos gestores públicos, pois é necessário que exista um acompanhamento para a garantia da lei e para ampliação de projetos que visam diminuir esse problema.
É importante destacar por fim que, como apresentado no presente trabalho, as limitações e custos da regularização fundiária são revertidas em benefícios para a sociedade como um todo, pois impactam em uma série de problemas sociais oriundos da falta de moradia digna. Repensar o espaço da cidade para acolher as pessoas por meio dessas políticas faz diferença para o presente e para o futuro de uma sociedade.
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SPIZCOCSKY, Celso. ESQUEMATIZADO - DIREITO ADMINISTRATIVO 2º. Ed. São Paulo: Editora Saraiva Educação, 2019
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