Pode a defesa ter acesso aos documentos que baseiam a acusação? Por Leonardo de Tajaribe

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bit.ly/2k7i9Qx | O tema que nos traz a análise refere-se à constante violação dos postulados constitucionais orientadores dos ritos processuais penais no ordenamento pátrio, excessivamente violados nas recentes megaoperações deflagradas por forças-tarefa de atuação mista. Sem olvidar da obviedade de que qualquer afronta a princípios fundamentais é excessiva.

Antes de adentrar à exposição proposta, faz-se necessário a explanação sumária dos institutos que protagonizaram o fato que se pretende pontuar, quais sejam: o acordo de leniência e a colaboração premiada.

Conforme se sabe, a colaboração premiada não é meio de prova recente no ordenamento brasileiro, apesar de recém popularizado. Tal meio probatório constitui-se em concessão de provas por meio de réu, normalmente integrante de organização criminosa que, sob a promessa de ser “premiado” com “benefícios”, delata os esquemas ilícitos sobre os quais o Estado estaria promovendo a persecução criminal.

A colaboração premiada foi regulamentada pela lei 12.850/13, denominada lei de organizações criminosas, eis que previu diversos meios de obtenção probatória referente aos crimes ali tipificados, bem como ritos específicos. Neste contexto, apesar de não ser utilizada só neste tipo penal, a colaboração premiada está prevista na mencionada lei especial, a qual determina e delimita os “benefícios” a que fará jus o réu delator, colocando sob condição basilar para concessão dos benefícios que as informações por este prestadas sejam eficazes para a elucidação dos fatos imputados.

 Trata-se, portanto, de instituto processual-penal, o qual só pode ser utilizado no curso da instrução processual, prévia ou processual, isto é, pode ser utilizado tanto na fase inquisitorial por meio de requisição do Delegado de Polícia ou do Ministério Público, devendo ser homologado pelo juiz competente, bem como na fase processual, por requisição do Ministério Público, preponderando a necessidade de homologação pelo magistrado competente, o qual analisará formalmente os termos do acordo de colaboração pactuado.

Doutro lado personifica-se o acordo de leniência, instituído por meio da lei anticorrupção, lei nº 12.846/13, a qual fixou a mencionada espécie colaborativa no âmbito administrativo, a qual é cabível para a autoridade máxima responsável por órgão ou entidade apontado pela prática dos atos previstos nesta lei, que deverá colaborar, também de forma efetiva, a semelhança do acordo de colaboração premiada, com as investigações.

O acordo de leniência se assemelha em partes ao acordo de colaboração premiada, visto que ambos visam a obtenção de informações que comprovem os ilícitos apurados e os envolvidos, bem como a promessa de contraprestação consubstanciada em benefícios processuais, como redução de pena e até o perdão judicial.

Todavia, a precípua diferenciação está contida na esfera de realização destes: ao passo que o acordo de colaboração só pode ser utilizado na esfera de responsabilização penal, o acordo de leniência somente é cabível no âmbito administrativo.

Não obstante, embates acadêmicos e jurídicos são verificados no momento em que se verifica a independência das instâncias de responsabilização penal e administrativa. Isto é, uma absolvição na esfera penal não necessariamente resultará em absolvição administrativa, salvo exceções.

Neste contexto, sabido é que as informações obtidas por meio dos acordos de leniência, apesar de não possuírem o condão de, por si só, embasar uma sentença condenatória, assim como as informações obtidas por meio de colaboração premiada, estas detêm legitimidade para possibilitar o início da instrução processual por meio do parquet, o qual poderá oferecer denúncia com base em elementos colhidos no âmbito administrativo em acordos de leniência.

Logo, sabendo-se que as informações obtidas nos acordos de leniência em âmbito administrativo poderão lastrear a pretensão punitiva do Ministério Público e sabendo-se que os mencionados acordos são protegidos pelo sigilo, extrai-se que a defesa em face de uma denúncia baseada nestas informações restaria prejudicada, ante o sigilo atribuído as informações ?

Nesta seara, em respeito aos princípios do contraditório e da ampla defesa, norteadores do devido processo legal em âmbito processual penal, a defesa deveria ter acesso amplo e irrestrito aos acordos de leniência que teriam servido de base para a promoção ministerial, como forma de garantir a ampla defesa e afastar a surpresa, consectário dos mencionados postulados principiológicos.

Este foi o entendimento esposado pelo Desembargador Néviton Guedes, em julgamento do TRF 1ª proferido em 6 de setembro do ano corrente.

Na ocasião, o Ministério Público Federal teria oferecido denúncia em face do ex-governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda, com base em informações angariadas em acordos de leniência, por meio de depoimentos de ex-executivos da empreiteira Andrade Gutierrez, os quais foram prestados no curso da “operação lava jato”.

Ante isto, a defesa do ex-governador impetrou Habeas Corpus para obter acesso as gravações áudio visuais dos depoimentos que basearam a acusação. Apesar do pedido já ter sido formulado perante o Juiz de primeiro grau responsável, arguindo a nulidade do impedimento de ter acesso as gravações, o magistrado teria negado a arguição de nulidade, entendendo trata-se de “mera irregularidade”, que poderia ser sanada no curso da instrução.

Portanto, o Desembargador Federal concedeu a ordem de Habeas Corpus, asseverando que o acesso prévio a todas as provas que baseiam a iniciativa acusatória é necessário antes da apresentação da defesa prévia, em respeito aos princípios da ampla defesa e contraditório, sendo insuficiente o acesso a meras transcrições dos depoimentos, feitas pelo próprio órgão persecutório, eis que estas poderiam estar eivadas de vícios formais.

Segue trecho da decisão:

"No caso, não remanesce dúvida de que a acusação se utilizou da transcrição de declarações prestadas em acordos de colaboração/leniência para embasar a acusação e à parte assiste o direito de somente apresentar defesa prévia ou ver iniciada a instrução, com a oitiva desses delatores, após ter acesso a esse material, que, ao que tudo indica, encontra-se em poder das autoridades encarregadas da persecução penal. Aliás, mesmo a autoridade impetrada admitiu a ausência das provas requeridas (mídias), não obstante tenha entendido tratar-se de mera irregularidade.

Ante o exposto, defiro, em parte, o pedido liminar para, reconhecendo ao paciente o direito de ter acesso às mídias contendo o material audiovisual das declarações prestadas pelos colaboradores/lenientes (cujas transcrições embasaram a denúncia), suspender as audiências de instrução designadas para os dias 09, 10 e 27 de setembro de 2019, bem como para os dias 04 e 10 de outubro de 2019, em que seriam ouvidos os colaboradores e os lenientes do processo, até que lhe seja fornecido(ao paciente) o material probatório em questão, ou até que seja julgado o presente Habeas Corpus. 

Com a análise do exposto, a decisão emanada da Corte Federal mostra-se em todo acertada, não permitindo um processo penal de exceção, garantindo ao acusado o conhecimento de todos os fatos a si imputados e todos os elementos probatórios contra si existentes, afastando a tentativa de uma “defesa cega” e garantindo a lisura da instrução processual desde sua origem, afastando os prejuízos oriundos de “nulidades de algibeira” e, finalmente, reconhecendo a perpetração de nulidades processuais, cujo reconhecimento estavam a muito escondidas pelo eclipse do ímpeto punitivo.
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Por Leonardo de Tajaribe da Silva Jr.
Fonte: Canal Ciências Criminais

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