Caso Danilo Gentili: até que ponto o humor é protegido pelo direito?

danilo gentili ponto humor protegido direito
De repente, Danilo Gentili está novamente no centro dos debates nacionais por conta de um filme de 2017, a respeito do qual há uma ordem de remoção vinda do Ministério da Justiça. Antes dessa polêmica explodir, o humorista já havia sido objeto de notícias recentes por ter sido condenado a indenizar o Sindicato dos Enfermeiros do Estado de São Paulo.

Sem qualquer juízo de valor sobre a qualidade do humor produzido pelo apresentador [1], sob a perspectiva estritamente jurídica, penso que tanto a decisão do MJ como a sentença do caso dos enfermeiros estão equivocadas.

Comecemos pela decisão judicial [2]. Estava em pauta postagem feita em 1/12/2020 no Twitter na qual ele se perguntava se alguém sabia de algum asilo no qual as enfermeiras masturbassem os residentes. O sindicato paulista da categoria pleiteou, em razão dele, indenização de 40 salários mínimos, equivalente a R$ 41,8 mil.

A preliminar de ilegitimidade ativa do sindicato arguida pela defesa foi afastada com base em acórdão do Supremo Tribunal Federal que defende a possibilidade de sindicatos, como associações que são, atuarem na defesa de quaisquer direitos subjetivos individuais e coletivos dos integrantes da categoria representada.

Ocorre que se mostra inviável o reconhecimento de legitimidade a organizações territorialmente delimitadas quanto a manifestações envolvendo uma classe indeterminada de pessoas — que não é representada apenas pelo sindicato estadual de São Paulo, mas, antes, encontra-se espalhada pelo mundo todo. Tanto mais nessa situação, que não atingiu um membro da categoria específico, ou mesmo o sindicato, mas utilizou, abstratamente, um arquétipo, do mesmo modo que piadas utilizam imagens consolidadas socialmente (sejam elas justas ou não) de advogados, médicos, policiais, corretores de imóveis, entre outras.

Embora seja bem estabelecido na literatura que estuda humor que os estereótipos que povoam as piadas sejam "ficções convenientes" absorvidas da sociedade ao longo de séculos [3], é certo que há também discussões contemporâneas sobre a ética em torno da reprodução dessas manifestações [4]. Mas esse é um debate que caberia de modo muito mais adequado no próprio Twitter do que numa decisão judicial.

Como tive a oportunidade de demonstrar em obra lançada há pouco sobre o tema [5], a jurisprudência sobre o tema reconhece, de modo massivo, que obras como piadas, charges e esquetes humorísticos sobre categorias sociais abstratas não ensejam indenização nem a pessoas específicas nem a associações que os congreguem [6]. Descontentes podem e devem se manifestar de modo contrário, como o sindicato efetivamente fez, mas não há dano a ser indenizado, nem sujeito passivo determinado ou determinável da alegada violação.

Precedentes notórios nesse sentido vão desde o acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que negou indenização a sindicato de pedreiros por conta de fala da personagem Nazaré na novela "Senhora do Destino" [7] até os mais de 70 acórdãos do Tribunal de Justiça de São Paulo que rechaçaram os pedidos de indenização de policiais por conta de esquete do "Casseta & Planeta" sobre os abusos cometidos na Favela Naval, em Diadema [8].

A outra polêmica na qual o humorista se envolveu, mais recente, diz respeito ao filme "Como se Tornar o Pior Aluno da Escola", em que Gentili tem créditos como produtor, roteirista e ator, no qual há a cena com suposta apologia à pedofilia. Nela, um professor, interpretado por Fábio Porchat, pediria que alunos o masturbassem. Embora a produção tenha estreado em 2017 nos cinemas, chegou apenas agora a catálogos de streaming como a Netflix. Por esse motivo, a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) em conjunto com o Ministério da Justiça e Segurança Pública, determinaram a remoção da obra, sob pena de multa diária de R$ 50 mil.

Espanta a histeria criada em torno do assunto. Além de a obra ser ficcional, e não documental, e ter um viés claramente não sério, de pretender ser uma sátira ao gênero de filmes passados na escola, o personagem de Porchat é, como ele mesmo disse em entrevista ao Jornal Nacional, um vilão (portanto, não um modelo de comportamento). É elementar que não faltam filmes, novelas, livros, séries, peças de teatro, HQs, entre outras formas de expressão, que contenham personagens asquerosos com condutas reprováveis, para dizer o mínimo, que vão de estupros a assassinatos, passando ainda por mentiras, violências, falcatruas. Qualquer conduta desses personagens será apologia ao que eles fazem? Por outro lado, produções como "Lolita" (tanto o romance do prêmio Nobel Vladimir Nabokov como o filme de Stanley Kubrick), "Presença de Anita" (sucesso de audiência no início dos anos 2000), e mesmo o recente filme "Licorice Pizza", de Paul Thomas Anderson, trazem relações amorosas entre maiores e menores de idade, e por mais ou menos polêmica que tenham causado, não estão proibidos.

Por certo há disparidades estéticas entre essas obras e "Como se Tornar o Pior Aluno da Escola", mas não é papel do Governo Federal avaliá-las. O que lhe cabia fazer — dar uma classificação indicativa ao filme — foi feito quando do seu lançamento. Tentativas patéticas como esta de retirar uma produção de circulação apelando a moralismos baratos, tal como já feito com os especiais de Natal do Porta dos Fundos, normalmente incorrem no chamado "Efeito Streisand", e acabam apenas por atrair mais atenção para o que se quer proibir. Foi o que ocorreu no caso concreto: o filme se tornou a quarta obra mais vista do catálogo da Netflix, e ganhou projeção muito superior à da sua estreia nos cinemas.

O que se mostra lamentável, de todo modo, é que tanto o Ministério da Justiça como o Judiciário se arvorem em posições paternalistas sobre o que é ou não apropriado em termos de humor, como se a própria sociedade não fosse capaz de processar e discutir, ela mesma, o conteúdo que lhe é oferecido.
_______________________________________

* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).
_______________________________________

[1] Como, aliás, recomenda a jurisprudência do STJ a respeito: "Não cabe ao STJ, portanto, dizer se o humor é 'inteligente' ou 'popular'. Tal classificação é, de per si, odiosa, porquanto discrimina a atividade humorística não com base nela mesma, mas em função do público que a consome, levando a crer que todos os produtos culturais destinados à parcela menos culta da população são, necessariamente, pejorativos, vulgares, abjetos, se analisados por pessoas de formação intelectual 'superior'" (STJ. 3ª Turma. REsp 736.015/RJ. Rel. min. Nancy Andrighi, julg. 16/06/2005).

[2] TJ-SP. 42ª Vara Cível. Autos 1120854-02.2020.8.26.0100. O recurso de apelação de Gentili não foi conhecido pelo TJ-SP por insuficiência de preparo recursal.

[3] DAVIES, Christie. Jokes and targets. Bloomington-Indianapolis: Indiana University Press, 2011. p. 9.

[4] Por exemplo, é difícil argumentar que uma piada racista contada por um membro da Ku Klux Klan seja "apenas humor", dado o contexto de ódio em que ela é produzida (BILLIG, Michael. Violent racist jokes. In: LOCKYER Sharon; PICKERING, Michael (orgs.). Beyond a joke: the limits of humour. New York: Palgrave Macmillan, 2009. p. 36-38).

[5] CAPELOTTI, João Paulo. O humor e os limites da liberdade de expressão: teoria e jurisprudência. São Paulo: Dialética, 2022.

[6] TJ-RJ. 3ª Câmara Cível. Apelação 789/2005. Rel. des. Luiz Felipe Haddad, julg. 21/6/2005; TJ-GO. 2ª Câmara Cível. Apelação 186967-86.2014.8.09.0051. Rel. des. Carlos Alberto França, julg. 21/6/2016; TJ-MT. 3ª Câmara Cível. Apelação 43815/2003. Rel. Des. Orlando de Almeida, julg. 24/3/2004; TJ-RS. 10ª Câmara Cível. Apelação 70044551489. Rel. des. Jorge Alberto Schreiner Pestana, julg. 29/09/2011; TJ-SP. 7ª Câmara de Direito Privado. Apelação 0143502-08.2011.8.26.0100. Rel. des. Walter Barone, julg. 15/5/2013.

[7] "[...] a procedência dessa demanda importaria no reconhecimento da ilicitude de qualquer filme (ou novela, ou seriado, etc.) em que existisse, por exemplo, um vilão corrupto e capaz de qualquer manobra para atingir seus objetivos, desde que este exercesse algum ofício, porque, para alguns, poderia haver associação ilegal entre a conduta do vilão e a profissão por ele desenvolvida. Isso, porém, simplesmente não seria razoável" (TJ-RS. 10ª Câmara Cível. Apelação 70023682768. Rel. des. Luiz Ary Vessini de Lima, julg. 13/11/2008).

[8] Ver, por todos: "Revelam [os fatos narrados], antes, manifestações próprias da liberdade de criação artística e da liberdade de imprensa, associadas de modo instrumental ao direito de crítica, que se exerceu no caso, sob o gênero artístico da sátira, sem nenhuma intenção ofensiva, contra agentes determinados da autoridade pública" (TJ-SP. 2ª Câmara de Direito Privado. Apelação 9154334-73.1999.8.26.0000. Rel. des. Cezar Peluso, julg. 27/8/2002).
_______________________________________

João Paulo Capelotti é doutor e mestre em direito pela UFPR, membro da International Society for Humor Studies e advogado.
Fonte: Conjur

1/Comentários

Agradecemos pelo seu comentário!

Postar um comentário

Agradecemos pelo seu comentário!

Anterior Próxima