O caso em questão chegou à Justiça de Alagoas em setembro de 2023, quando um italiano fez uma queixa contra um homem negro de Coruripe, a 85km de Alagoas. Em diálogo pelo WhatsApp, o réu disse ao estrangeiro que “essa cabeça branca, europeia e escravagista não deixava enxergar nada além dele mesmo”.
O homem negro teria trabalhado sem receber para o branco, que também teria oferecido parte de um terreno e não cumprido com o acordo. O italiano era casado com a tia do cidadão brasileiro, que morava em Brasília e se mudou para Coruripe com a família durante a pandemia de Covid-19 em busca de um local mais seguro.
Segundo a defesa do brasileiro, o estrangeiro vendeu a ele e a outras pessoas um terreno para montarem um condomínio. À frente de um projeto de audiovisual, o europeu contratou o homem negro como prestador de serviço. Com o fim da pandemia, o brasileiro voltou para Brasília, sem nada receber do italiano.
Além de não fazer o pagamento, sem o negro como funcionário, o homem branco engavetou o projeto de audiovisual e tomou de volta o lote que tinha sido comprado pelo seu ex-funcionário, ainda de acordo com a defesa do agora réu por “racismo reverso”.
Neste contexto, o acusado teria trocado mensagens com o italiano dizendo que ele tinha uma cabeça “branca, europeia e escravagista”. Mas a prova apresentada pela denúncia do MP-AL, que traz apenas uma fotografia feita por outro celular, não mostra a conversa inteira, segundo a defesa.
Em janeiro de 2024, o MP-AL denunciou o negro por “crime de injúria racial”. Um juiz de Alagoas aceitou. Em nota à imprensa, o MP-AL alegou que a denúncia foi feita com base na Lei nº 14.532, de 2023, que configura o crime de injúria racial quando há o objetivo de ofender uma pessoa em razão da cor, raça, etnia, religião ou origem.
Já o cidadão acusado de “racismo reverso” passou a ser defendido pelo Instituto Negro de Alagoas (Ineg). A instituição apresentou um recurso no TJ-AL, pedindo para o processo ser arquivado. No entanto, sem segunda instância, o tribunal negou o pedido e o caso foi adiante, com o homem negro correndo risco de ser preso.
DPU diz que legislação não prevê acusação de racismo contra pessoa negra
Diante da decisão do TJ-AL, onde a ação continua tramitando, o Ineg recorreu ao STJ. O caso está na pauta desta terça da 6ª Turma do tribunal superior. O relator é o ministro Og Fernandes. A depender da decisão, casos parecidos poderão ser aceitos nas instâncias inferiores ou não serão mais aceitos pelo Poder Judiciário brasileiro.
Diante de tal cenário, a Defensoria Pública da União (DPU) publicou, em julho de 2024, uma nota técnica contra o uso do “racismo reverso” na Justiça nacional. O documento foi elaborado pelo Grupo de Trabalho de Políticas Etnorraciais da DPU.
A nota diz que “a lei nº 7.716/89 (Lei de Racismo) tem como objetivo proteger grupos sociais historicamente discriminados em razão de sua própria existência, não sendo possível a inclusão de pessoas pertencentes a coletividades historicamente hegemônicas e privilegiadas como sujeito passivo de tais delitos”.
“A potencial adoção da tese do ‘racismo reverso’ pelo Poder Judiciário nega que as práticas discriminatórias, segregacionistas e violentas da sociedade brasileira sempre tiveram como foco grupos étnicos-raciais específicos, a exemplo da população negra e dos povos originários”, ressalta a DPU.
O órgão destaca ainda que as leis que definem e penalizam o racismo devem ser interpretadas à luz da história, e não de maneira literal. Para a DPU, o juiz deve considerar discriminatória qualquer conduta ou tratamento que cause constrangimento ou humilhação a grupos minoritários, tratamento este que normalmente não seria dispensado a outros grupos com base em cor, etnia, religião ou origem.
Segundo o documento, são considerados possíveis alvos de racismo grupos como a população negra, povos originários, adeptos de religiões de matriz africana, imigrantes africanos e latinos, todos vítimas de perseguições e extermínios durante séculos de colonização europeia nas Américas, excluindo-se, portanto, grupos historicamente dominantes e privilegiados.
“Ora, dizer que uma pessoa branca é vítima de racismo no Brasil tem como premissa a invenção de um contexto histórico e social de exclusão, silenciamento, violência e extermínio que nunca existiu para esse segmento populacional. Por evidente, nem a lei, nem os tribunais, têm a capacidade de (re)construir essa História, que, ao fim e ao cabo, sequer poderia ser tida como revisão, mas como verdadeiro negacionismo histórico”, diz trecho do documento.
O Brasil contemporâneo foi construído com base em séculos de escravidão — estima-se que 4,8 milhões de pessoas foram trazidas da África à força para serem escravizadas do outro lado do Atlântico. O Brasil foi o país das Américas que mais escravizou e o último do continente a abolir a escravidão.
Por Renato Alves
Fonte: @otempo
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